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quarta-feira, 30 de março de 2016

CORPOS DIVINOS

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Em momentos conturbados, a literatura possui valor de documento. Ao retratar Cuba e, especificamente, Havana, entre os anos de 1957 e 1959, Guillermo Cabrera Infante, em Corpos Divinos, seu último romance – literalmente –, traça um painel do final do governo Fulgêncio Batista e da ascensão dos revolucionários de Sierra Maestra. Em paralelo, recupera – em cenas muito engraçadas –, suas obsessões mais significativas (as mulheres, o jazz, os filmes dos anos 50).

Corpos Divinos não tem aquele tom cortante de Três Tristes Tigres ou Havana para um Infante Defunto, mil trocadilhos ecoando a todo instante, como se a prosa fosse uma brincadeira em que as letras trocam de lugar dentro das palavras e as palavras dançam dentro das frases. Significados que não deveriam estar lá (mas que estão) surgem diante dos olhos atônitos do leitor. O que se lamenta é que poderiam estar presentes em maior quantidade. Como os originais do romance ainda estavam sendo revisados quando Cabrera Infante faleceu, há a possibilidade de que ele, um perfeccionista, talvez suprimisse alguns trechos ou incluísse outros. É fato conhecido que costumava trabalhar com diversas versões de seus textos, produzindo alterações significativas nos manuscritos antes de entregá-los para a editora.

Guillermo Cabrera Infante  (1929-2005)
(...) nestas memórias em que desejo celebrar todas as mulheres que passaram por minha vida naquele época (...), diz, em algum momento, o protagonista-narrador inominado de Corpos Divinos. Mas não são somente as mulheres que “passaram” pela vida, quer dizer, pelas páginas do romance. Todos os personagens da narrativa (celebridades, subcelebridades, anônimos) aparecem em cena se deslocando de um lugar para outro. Há um constante ir e vir pelas ruas, praias, salas de aulas, pensões, hotéis, cinemas, teatros, boates, estúdios de fotografias (principalmente no de Alberto Korda). Havana é uma festa – inclusive por que conta com a presença de Ernest Hemingway, que aparece várias vezes no texto, sempre com um copo na mão (vodca, daiquiri, mojito), e que, em momento estrela do espetáculo, ocupa várias páginas do livro, durante a gravação de uma das cenas de uma das adaptações de O Velho e o Mar para o cinema. Enfim, em Corpos Divinos, ninguém consegue ficar parado. Nem mesmo o narrador, que oscila entre a subversão política e as dezenas de mulheres que cobiça, corteja, seduz, leva para a cama. Desafortunadamente, nessas duas atividades amorosas, alguns finais não podem ser considerados como felizes. Não se pode ganhar sempre, diria algum cínico com pretensões filosóficas.

Nas primeiras 400 páginas (o livro tem 619), o romance se assemelha a um esboço canhestro de crítica social, a vida privada cubana sendo desvelada pelas mãos de um escritor talentoso, mas que parece estar se repetindo. A sensação de déjà vu é constante – principalmente para o leitor que já transitou por outros textos de Cabrera Infante. Nas histórias ilustradas de um grupo de amigos (Franqui, Adriano, René, Silvio, Branly, Alberto, Jesse, e outros menos cotados), o sexo é o denominador comum. O diferencial surge quando as questões políticas tomam conta da narrativa. O ritmo lento, quase sonolento, é substituído pela urgência descritiva. O quadro dramático adquire cor, intensidade e dinamismo – principalmente nos episódios em que os personagens se reúnem para conspirar. É um tempo em que as pessoas precisam ter discrição política, para não serem arrastadas pelas armadilhas que estão espalhadas em cada esquina da capital cubana. É um tempo em que as amizades são colocadas à prova, o amigo de infância transformado em governista ou em preso político.

Camilo Cienfuegos (esq) e Fidel Castro (centro)
O protagonista-narrador, jornalista, casado, mulherengo, contrário ao governo de Batista, vai costurando histórias do passado no presente narrativo. Surge um inventário ácido,desses que não poupam ninguém. Simultaneamente, o otimismo do Don Juan cubano, manifesto nas primeiras páginas, vai se transformando em desalento. Um exemplo básico pode ser visualizado na cena em que, logo após a fuga de Batista, ocorre uma invasão na casa do coronel do exército, localizada ao lado do local em que o protagonista-narrador mora. Quando ele tenta impedir o barbarismo, a turba o ameaça. Foi necessário chamar o exército para impedir uma tragédia maior: (...) fiquei em casa pensando nas ironias da psicologia de massas: a gentalha dos fundos, que resolvera se agrupar na entrada da casa do coronel no dia em que Batista veio visitá-lo e que deram vivas a ele, era a mesma que, havia pouco, nos acusava de batistianos por sermos contra o saque e a pilhagem da casa do coronel. Era a minha primeira experiência com as mutações que a história impinge às massas – mas não seria a última.

Há um constante desfilar de personagens históricos pela narrativa (Fidel Castro, Ernesto “Che” Guevara, Camilo Cienfuegos). São os novos heróis da História. O protagonista-narrador, figura secundária nesse cenário, apenas observa e relata (para o leitor) o que ocorre nesses primeiros dias de confusão, de disputa pelo poder. Apesar da economia de detalhes sórdidos, fica claro que muitos equívocos foram cometidos. Não há revolução sem sangue.

Nas últimas páginas, a melancolia prevalece. Os sonhos de um país democrático se esfumaçam. A liberdade se transforma em uma figura de retórica. E o ditador deposto é substituído por um novo déspota. Não há salvação no reino político.


TRECHO ESCOLHIDO


Por aqueles dias ouve um lance de bravura em relação a uma mulher, de parte de outro amigo, René de La Nuez (René e Silvio talvez tenham sido meus melhores amigos daqueles tempos), mas desta vez não houve confronto com um mafioso, e sim um encontro com Eros, pura e simplesmente. Fazia tempo que René andava atrás de Sigrid Gonzáles (ou melhor, que Sigrid estava atrás de René, pois ela sempre fora a fim de conquistá-lo, ainda que ele pusesse em risco seu cargo de professor de arte dramática ao sair com uma aluna: os encontros eram sempre secretos), e nesse dia, quase glorioso para todos (a tarde radiante de uma tardia primavera cubana, com o sol saindo por entre nuvens espessas depois que a chuva clareou a atmosfera, o ar abafado amenizado pela chuva do meio da tarde), porém mais do que glorioso para René, que nesse dia estava determinado a se deitar com Sigrid. Não sei se ele conseguiu no mesmo dia ou um pouco mais tarde, mas lembro de estar na entrada do cine Radiocentro me despedindo de René, que ia se encontrar com Sigrid no restaurante La Palmera, a apenas duas quadras dali, eu dando conselhos de última hora de como tratar uma virgem (era evidente que Sigrid, aos dezesseis anos já completos, ainda o era), para não fracassar nesse primeiro encontro, já que René padecia de vários males sexuais causados, evidentemente, pela timidez: ejaculação precoce e pouco tempo de ereção, que combatera nos dias em que ia para a cama com a horrível Dulce Atós (que eu chamava tanto de Dulce Atroz a ponto de esquecer seu verdadeiro sobrenome) utilizando Yoinbina Hube (acho que é o nome correto da marca) para conseguir uma ereção indubitável, durável, e depois recorrendo à fricção com Nupercainal, que era um anestésico tópico, mediante os quais ele conseguia satisfazer o desenfreado apetite sexual de Dulce Atroz (às vezes eu chegava a dizer que ela tinha duas irmãs, chamadas Dulce Aramis e Dulce Portos, as Três Mosquehetairas, Pornós, Atroz e Amamis, sem esquecer uma possível quarta irmã, D’Artdemain), mas agora, hoje, tinha certeza de que ele não ia precisar da ajuda de sua farmacopeia, que René transformou em motivo de piada (nós, em Cuba, pelo menos meus amigos, fazíamos graça de tudo, mesmo da realidade mais dolorosa, e assim superávamos o lado terrível do problema por meio do riso. Eu, pelo menos, fazia, e por isso não me aproximei dos problemas alheios com a devida distância, intimamente, pois sempre havia a distância do gracejo...).

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