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terça-feira, 14 de março de 2017

DOM CASMURRO

Não tenho certeza de quantas vezes li Dom Casmurro, de Machado de Assis. Provavelmente mais de seis. Para não entrar em contradição, ou produzir alguma mentira grosseira, vamos aceitar que seis é um bom número, afinal sete é conta de mentiroso (como dizia minha avó) e cinco me parece pouco. Foram leituras realizadas em circunstâncias diferentes. Desde a simples curiosidade para conhecer um livro importante da literatura brasileira até o sadismo de analisar, sob a ótica acadêmica, a patologia comportamental de um homem que acredita ser vítima do adultério. Ou melhor, de um indivíduo que se sente traído duplamente: pela esposa e por seu melhor amigo. De qualquer maneira, foram vários encontros com o romance e todos muito proveitosos.

Minha última leitura aconteceu recentemente, logo depois que comprei uma nova edição do livro. É um volume bonito. E caro. Muitas pessoas dirão que é mais caro do que bonito. Questão de opinião, evidentemente. De minha parte – não posso deixar de confessar –, sinto grande prazer em folhear a publicação. O gozo se amplia sensorialmente com a textura e o cheiro do papel. As intervenções gráficas de Carlos Issa são visualmente interessantes. Ele usou diversos recursos artísticos (letraset, tinta, lápis, fita adesiva) sobre fotografias antigas. O projeto gráfico, de Tereza Bettinardi, faz referências à edição princeps da Livraria Garnier, de 1899 – e ficou muito bonito. Por fim, os volumes com capa dura ampliam esse fetiche que chamam de bibliofilia.

Com relação à carpintaria literária de Machado de Assis, o elemento que mais me agrada é a fragmentação. Como as narrativas mais importantes do “bruxo do Cosme Velho” foram publicadas, inicialmente, em jornal, sob a forma de folhetim, ele tinha incrível domínio do “gancho”; ou seja, desse truque que é construir a narrativa de tal forma que a atenção do leitor não desapareça e, mais importante, que ele fique ansioso para ler o próximo capítulo    que só virá na próxima publicação (se vier!). Ao mesmo tempo, a técnica da fragmentação (pequenos capítulos) possibilita a introdução de novas situações narrativas, outros personagens e um melhor controle cronológico (o tempo narrativo vai e volta do passado com frequência). É um jogo. As peças do quebra-cabeça são distribuídas lentamente pelo texto. O desenho final, que parece estar fora do alcance do leitor, somente se revela, na sua plenitude, na última página. 

Dom Casmurro ficou famoso por um rótulo machista: o possível adultério de Maria Capitolina Pádua, a Capitu. Durante muitos anos, no século passado, era comum promover juris simulados entre os alunos do segundo grau para discutir se a dona dos “olhos de ressaca” havia traído o marido. Mas, eliminando a visão de que as mulheres são capazes de atrocidades indescritíveis, não há nada no romance que comprove, cartesianamente, que aconteceu isso ou aquilo. Há apenas suspeitas. Imagens produzidas pela insegurança de Bentinho ou... Por algo mais.

São dois os momentos cruciais para tentar obter induzir o leitor a uma possível simpatia à causa de Bentinho. O primeiro ocorre no enterro de Ezequiel Escobar, que morreu afogado. (...) Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas. A escolha cuidadosa das palavras pelo narrador parece ser o preâmbulo de uma peça jurídica de acusação, onde Capitu jamais terá voz ou direito de defesa. O advogado Bento de Albuquerque Santiago se transforma em promotor – aquele que não tem misericórdia pelo acusado, que quer a condenação máxima!

O segundo episódio ocorre quando Bentinho vê no filho, que também se chama Ezequiel, algumas semelhanças físicas com Escobar.

Aproximei-me de Ezequiel, achei que Capitu tinha razão; eram os olhos de Escobar... (...) Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iam-se apurando com o tempo. Eram como um debuxo primitivo que o artista vai enchendo e colorindo aos poucos, e a figura entra a ver, sorrir, palpitar, falar quase, até que a família pendura o quadro na parede, em memória do que foi e já não pode ser. Aqui podia ser e era. (...) Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã ou pedir-me à noite a benção do costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava-as, para me não descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que ninguém. Quando nem mãe nem filho estavam comigo o meu desespero era grande, e eu jurava matá-los a ambos, ora de golpe, ora devagar, para dividir pelo tempo da morte todos os minutos da vida embaçada e agoniada. Quando, porém, tornava a casa e via no alto da escada a criaturinha que me queria e esperava, ficava desarmado e diferia o castigo de um dia para outro. 


Somando essas impressões, cabe ao narrador em primeira pessoa, Bentinho, decretar que a traição aconteceu. John Gledson, um dos estudiosos mais instigantes da obra de Machado de Assis, sugere outra interpretação: Bentinho nutre por Escobar sentimentos mais significativos que os de amizade. No tempo em que foram colegas de seminário pode (ou não) ter acontecido algo que o narrador subtraiu. Assim – embora Gledson não tenha escrito isso –, em uma abordagem contemporânea, dessas que misturam psicanálise de botequim e um incerto preconceito sexual, ao ver a imagem física do amigo no rosto do filho, ele fica furioso com a infidelidade de... Escobar! Pouco lhe importa que a mulher o tenha traído, o que não aceita é que essa deslealdade tenha sido praticada por aquele por quem ele tinha um amor intenso (porém recalcado). Trocando em miúdos, toda a sua raiva, canalizada para Capitu, está sedimentada em fontes homoeróticas. Evidentemente, esse raciocínio torto, e completamente discutível, ainda precisa ser mais bem analisado e discutido.

No plano concreto, Capitu e Ezequiel, o filho, são vítimas do ostracismo. Uma vez decretada a sentença, cabe o exílio. Eles são enviados para a Europa, sem direito à passagem de volta. Dessa forma arbitrária e autoritária, Bentinho se isola do que imagina ser a desgraça e passa a viver entre a solidão, o mau-humor e a melancolia.

Alguns anos depois, Ezequiel regressa ao Rio de Janeiro. É recebido friamente por seu pai: Era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar. Era o meu comborço; era o filho de seu pai. Na mente de Bentinho, não resta espaço para dúvidas. Ele vive de certezas.

Para completar o cenário de vingança, depois de seis meses, o rapaz vai viajar e morre de febre tifoide. Como Bentinho reage à morte do filho? (...) foi enterrado nas imediações de Jerusalém, onde os dois amigos da universidade lhe levantaram um túmulo com esta inscrição, tirada do profeta Ezequiel, em grego: “Tu eras perfeito nos teus caminhos”. Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o desenho da sepultura, a conta das despesas e o resto do dinheiro que ele levava; pagaria o triplo para não tornar a vê-lo.

A última frase (pagaria o triplo para não tornar a vê-lo) é de uma crueldade incomensurável. Mas, o horror se torna maior no parágrafo seguinte: 

Como quisesse verificar o texto, consultei a minha Vulgata, e achei que era exato, mas tinha um complemento: “Tu eras perfeito nos teus caminhos, desde o dia de tua criação”. Parei e perguntei calado: “Quando seria o dia da criação de Ezequiel?” Ninguém me respondeu. Eis aí mais um mistério para ajuntar aos tantos deste mundo. Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro.


Jantei bem e fui ao teatro, diz Bentinho, sem esboçar a mínima culpa. A rejeição da paternidade ocorre através do ódio e da dissimulação. O irônico dessa situação está no fato de uma das maiores acusações contra Capitu é exatamente a dissimulação (Olhos de cigana oblíqua e dissimulada, segundo a célebre definição de José Dias).

Dom Casmurro sofre do pior dos defeitos do realismo do século XIX: centraliza na figura feminina a culpa por todos os pecados do mundo. Ver, entre outros exemplos dessa prática, Madame Bovary (Gustave Flaubert), Naná (Emile Zola), O Primo Basílio (Eça de Queiróz), As Ligações Perigosas (Choderlos de Lacros), A Dama das Camélias (Alexandre Dumas, fils) e Anna Karenina (Liev  Nikolayevich Tolstoi).

Escrito na forma de bildungsroman (romance de formação), o livro conta, em ordem não cronológica, a história de Bentinho desde a infância até a velhice. Na medida em que os fatos vão se desenrolando diante dos olhos do leitor, revelando e escondendo – lentamente – algumas coisas, insinuando outras, a possibilidade da traição da esposa é um dos itens que compõem a narrativa. Capitu é apenas um dos personagens. Simples assim. Por outro lado, cabe lembrar que as histórias de Maria da Glória Fernandes Santiago, Pedro de Albuquerque Santiago, Cosme, João Pádua e Fortunata, Justina, Sacha e, sobretudo, José Dias (um dos personagens mais pitorescos de Machado de Assis) são soterradas pela avalanche de acusações contra Capitu.

O delírio de Bentinho não tem limites – independente de ser verdadeiro ou fantasia. Cabe aos novos leitores de uma das mais brilhantes narrativas da literatura brasileira superar essa obsessão e propor outros olhares.

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