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sexta-feira, 1 de setembro de 2017

O DIA EM QUE A MINHA VIDA MUDOU

Não tenho muita intimidade com a literatura infantojuvenil. Fui – muito tempo atrás – leitor da coleção Terra-Mar-e-Ar (Emílio Salgari, Júlio Verne, Robert Louis Stevenson, etc.). Depois, em algum momento do ensino médio, li os contos e crônicas publicados em Para Gostar de Ler. E parei por ai. Isso significa que os livros da coleção Vagalume (que iluminaram uma geração depois da minha) não fizeram (não fazem) parte da minha biblioteca afetiva. Provavelmente perdi algo que jamais recuperarei.

Ao longo da vida presenteei os filhos de amigos com livros (Ziraldo, Rute Rocha e Pedro Bandeira, entre outros). Mas (tentando não ofender os escritores), preciso dizer que nenhum desses livros chamou a minha atenção. Tendo como objeto de estudo a literatura adulta, ignorei todas as outras literaturas. A exceção aconteceu com a belíssima edição de 4 Contos, do e. e. cummings – cuja compra (preciso confessar!) ocorreu mais pela admiração que tenho pelo estadunidense do que pelo conteúdo do livro. De qualquer forma, cumpre declarar que as histórias que ele escreveu para a filha e para o neto são geniais e estão valorizadas pelas ilustrações de Eloar Guazzelli.

A menos de um mês ouvi alguns burburinhos em torno de um livro com título quilométrico: O Dia em que a Minha Vida Mudou por Causa de um Chocolate Comprado nas Ilhas Maldivas, escrito pela Keka Reis (ilustrações de Vin Vogel). Sou um curioso. E isso significa que fiz o que foi necessário para conseguir um exemplar.

Gostei. Gostei muito. É um livro engraçado – pelo menos para mim, que já ultrapassei a barreira do meio século faz um tempão. Além disso, é uma celebração do poder da linguagem – que desliza pelas páginas do livro com uma leveza que encanta.

As aventuras de Mia (a narradora) não diferem das aventuras de outras meninas pré-adolescentes. Mas se todas as histórias se parecem, o diferencial está na forma com que elas são transmitidas ao leitor. E, nesse departamento, Mia consegue cativar. As suas angústias são repassadas de uma maneira especial – e estão bem próximas do mundo “real”.

Tudo começa quando Mia recebe um bilhete do Bereba durante a aula de ciências. O que parecia certeza desmorona. O melhor amigo (amigo com O maiúsculo) contribui para que ela tenha uma revelação crucial: a transição entre uma e outra fase da vida não ocorre de maneira pacifica. Mas quem está preparado para essa tempestade? Mia não está. Definitivamente, não está. Então, no momento em que, como mágica, Bereba se transforma em Paulo, muitas lágrimas rolam pela sua face – o banheiro é sempre um bom esconderijo nesses momentos. 

Além dessa tragédia pessoal, há o mundo social. Por exemplo, Jade é um capítulo à parte. O mesmo vale para a Julia F. (não confundir com a Júlia P. e a Júlia A.), que surge em cena para atrapalhar aquilo que até cinco minutos antes do bilhete parecia não ter a mínima importância.

O Dia em que a Minha Vida Mudou parece espelhar um drama. É apenas aparência. Por trás de toda confusão há um pouco de exagero. Ou melhor, um pouco de comédia. É isso que nos faz projetar o que vai acontecer com Mia nos próximos livros.

P.S: É um palpite. Apenas um palpite. Tenho comigo que Mia vai protagonizar outros livros.


TRECHO ESCOLHIDO


O sinal tinha tocado e as pessoas não voltaram. Por quê? O que tinha acontecido? Será que a Jade tinha mostrado o bilhete para todo mundo? Será que o Bereba tinha se apaixonado pelo cabelo cabeludo da Júlia F.? Eu tinha desistido de escrever a carta para minha mãe – definitivamente ela não ia me dar um celular –, e me concentrei para me lembrar do intervalo em que fiquei sozinha com o Bereba. Isso ia me distrair. Lembrar do intervalo que ele preferiu ficar comigo em vez de ir com todos os alunos para a pracinha pela primeira vez. Isso significava muito. Isso significava tudo. O que isso significava mesmo? A classe toda começou a voltar. 

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