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segunda-feira, 20 de novembro de 2017

O FOGO NA FLORESTA



Os delírios causados pelo autoengano da classe média brasileira. Se não fosse tão assustadora e, por extensão, tão próxima da realidade, essa poderia ser uma síntese aceitável do romance O Fogo na Floresta, de Marcelo Ferroni. O problema – sim, isso é um problema – é que a literatura brasileira contemporânea adora ficar se esfregando em devaneios econômicos, em conflitos superficiais, e se esquece de abordar questões mais importantes e menos dramáticas.

No ano de 2010, dois anos antes das Olimpíadas de Londres, a editora Guanabara (nome fictício, embora não pareça) estabelece um plano de metas para publicações e vendas. Em linhas gerais, é por esse caminho – os bastidores do mundo editorial – que se movimenta parte da trama. O ambiente insalubre e a luta intestina corroem todo e qualquer instante de tranquilidade ou criatividade que possa surgir. A mistura antagônica de diversos ingredientes (ambição, inveja, incompetência, etc.) impede que a lucidez prevaleça. Na guerra cotidiana pela sobrevivência não há lugar para os inocentes. A precariedade se instala.

Simultaneamente, a vida sentimental e econômica de Heloísa Peinado, a protagonista, está encapsulada em várias outras histórias. Oscilando entre a ambição desmedida e a alienação, ela tenta driblar as armadilhas geradas por um casamento infeliz. A incomunicabilidade com o marido causa uma espécie de catatonia. Filha de um tempo em que algumas mulheres consideram a maternidade um empecilho para o sucesso profissional, ignora os cuidados que o filho pequeno requer. Ao seu redor a realidade objetiva desaparece. Esse ambiente caótico pode ser traduzido em uma equação banal: obter um pouco de felicidade instantânea é igual ao rompimento de algumas barreiras éticas e morais.

Na primeira oportunidade, Heloísa trai o marido. É uma forma de sair da rotina, de romper com a inércia, de instaurar a alegria. E engana-se quem pensa em estruturas românticas ou em desatinos causados pelo amor. Heloísa não entende essas banalidades. Embora não manifeste, ela está ciente de que o amante é um arrivista inepto, um desses sujeitos que imagina grandes golpes comerciais e que não dispõe de habilidade para executá-los. O que ela quer é a novidade. Ou melhor, a fuga de um ambiente opressor.

Heloísa representa a catástrofe (o desastre inconsequente)  se alastrando como o fogo na floresta.

Com relação à carpintaria do romance, há o uso de recursos interessantes: a narrativa foi descosturada e é apresentada em cinco capítulos e inúmeros fragmentos. O uso alternado do tempo (passado remoto, passado mais próximo, presente) também ajuda no dinamismo. A intersecção de um capítulo sobre um navio que fica encalhado na Antártida faz o leitor se perguntar: o que isso faz aqui? Obviamente, precisa-se continuar a leitura para descobrir o que está acontecendo. Infelizmente, é só fogo de palha – o que não invalida o truque. Outra sacada (ou sacanagem) com algum fundamento está no reencontro entre Heloísa e um colega de colégio ("Big" é citado no primeiro capítulo). Mas, nesse caso, há total desperdício da situação – Heloísa não está conectada com as lições oferecidas pela vida.

A grande restrição está localizada em outro lugar de O Fogo na Floresta: o uso narrativo de uma série de marcas comerciais. As ocorrências são inúmeras: Consul (p. 34, 64), McDonald’s (p. 50, 65), Moët Chandom (p. 53), Taittinger (p. 53), Claro (p. 62 e seguintes), Ponto Frio (p. 63), Pringles com Coca Zero (p. 154), Tok&Stok (p. 167), Adidas (p. 212), Quatro Rodas (p. 246). Se a ideia era produzir algum tipo de contato com o mundo da classe média, o leitor não percebe essa sutileza. Os outdoors narrativos, misturando itens de alto e baixo padrão, sem muito critério, tornam irrelevante qualquer reflexão sobre o tema. Além disso, esse artifício sequer é novo – foi utilizado “ad nauseam” por escritores medianos como Bret Easton Ellis, em O Psicopata Americano (1991) e Glamorama (1998) ou Lolita Pille, em Hell Paris – 75016 (2002) e Buble Gum (2004).

Salvo uma ou outra cena, aqui e ali, O Fogo na Floresta é mais do mesmo. E entenda-se que “o mesmo” se satisfaz em descrever o que já está descrito em centenas de outras narrativas – embora com roupagens e linguagens diferenciadas.  


P.S: Na “orelha”, um redator muito criativo afirma que Heloísa é uma herdeira direta de Emma Bovary. Heresia.   



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