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segunda-feira, 15 de outubro de 2018

SONETO 18, DE WILLIAM SHAKESPEARE


Considero a tradução como uma tarefa impossível de ser realizada. Exagero? Possivelmente. Mas,... 

Além das diversas teorias literárias sobre o que deve ser observado e transportado de um mundo para o outro, cabe lembrar que o exercício literário da tradução implica em resolver um infinito número de questões. 

Traduzir está muito aquém de conhecer o vocabulário ou de interpretar criativamente o texto original. Sem ter intimidade com os dois idiomas (muitas vezes, três), sem um mínimo de conhecimento geral e específico, são poucas as chances de se obter um bom resultado. E essas dificuldades se multiplicam quando o objeto da tradução é a poesia. Por exemplo, adaptar a métrica original equivale a algum tipo de mergulho no inferno: impossível voltar ao mundo dos vivos sem algum tipo de queimadura.

Confesso que fiz algumas poucas e péssimas tentativas, alguns anos atrás. Diante dos resultados obtidos, concluí que estava procurando pelo tesouro em lugar errado. Agora me contento em ler o trabalho dos outros. Em outras palavras, gosto de comparar diversas versões. A beleza do texto que surge através da tradução está contaminada por agradáveis surpresas. Como não pensei nisso antes?, é uma frase recorrente.
 
O soneto 18, de William Shakespeare é um bom exercício de tradução – e de espanto. Vejamos quatro versões todas partindo do texto original, que foi escrito em inglês clássico (ou medieval), muito diferente do inglês contemporâneo.

Shall I compare thee to a summer”s day?

Thou art more lovely and more temperate:

Rough winds do shake the Darling buds of May,

And summer’s lease hath all too short a date:

Someti-me too hot the eye of heaven shines,

And often is his gold complexion dimm’d:

And every fair from fair sometimes declines,

By chance, or nature’s changing course untrimm’d;

But thy eternal summer shall not fade,

Nor lose possession of that fair thou ow’st,

Nor shall death brag thou wander’st in his shade,

When in eternal lines to time thou grow’st;

    So long as men can breathe, or eyes can see,

    So long lives this, and this give life for thee.


O português Vasco Graça Moura interpretou o poema de uma maneira muito particular:

Que és um dia de verão não sei se diga.

És mais suave e tens mais formosura:

vento agreste botões frágeis fustiga

em Maio e um verão a prazo pouco dura.

O olho do céu vezes sem conta abrasa,

outras a tez dourada lhe escurece,

todo o belo do belo se desfasa,

por caso ou pelo curso a que obedece

da Natura; mas teu eterno verão

nem murcha, nem te tira teus pertences,

nem a morte te torna assombração

quando o tempo em eternas linhas vences:

      enquanto alguém respire ou possa ver

      e viva isto e a ti faça viver.


Alguém há de dizer que os portugueses falam uma língua que, embora pareça familiar, é completamente diferente do “nosso” português. E que – por isso – o poema perdeu a sua inteligibilidade. Evidentemente, uma bobagem. Não devemos pedir o uso de legendas (ou notas de rodapé) nesse tipo de situação!!!


Em terras cariocas, Geraldo Carneiro fez uma tentativa interessante:

Te comparar com um dia de verão?

Tu és mais temperada e adorável.

Vento balança em maio a flor-botão

E o império do verão não é durável.

O sol às vezes brilha com rigor,

Ou sua tez dourada é mais escura;

Toda beleza enfim perde o esplendor,

Por acaso ou descaso da Natura;

Mas teu verão nunca se apagará,

Perdendo a posse da beleza tua,

Nem a morte rirá por te ofuscar

Se em versos imortais te perpetua.

     Enquanto alguém respire e veja e viva,

     Viva este poema, e nele sobrevivas.



Além de começar a frase com um pronome possessivo (ó gramática, minha torturadora!), há um tom que oscila entre a concessão e informalidade. Mas não está mal, apesar do “natura”, que ajuda na rima, mas perde a graça estética. 

A proposta de Ivo Barroso surge com objetivo diferente. A formalidade torna o texto menos radiante e mais próximo de séculos passados.

Devo igualar-te a um dia de verão?

Mais afável e belo é o teu semblante:

O vento esfolha Maio ainda em botão,

Dura o termo estival em breve instante.

Muitas vezes o azul do céu calcina,

Mas o áureo tom também perde a clareza:

De seu belo a beleza enfim declina,

Ao léu ou pelas leis da Natureza.

Só teu verão eterno não acaba

Nem a posse de tua formosura;

De impor-te a sombra a Morte não se gaba

Pois que essa estrofe eterna ao Tempo dura.

    Enquanto houver viventes nesta lida,

    Há-de viver meu verso e te dar vida.




É uma proposta engessada, baseada na métrica e nas rimas. O vocabulário utilizado (afável, esfolha, estival, calcina, áureo, declina, lida) não permite uma leitura prazerosa. O dicionário parece ser indispensável. Enfim, falta o frescor da modernidade. O uso de algumas rimas exóticas (calcina / declina, acaba / gaba) também não ajuda. 

Forçar o ritmo não parece ser a solução.

Por fim, cabe convocar Thereza Christina Rocque da Motta para completar essa brincadeira comparativa:

Como hei de comparar-te a um dia de verão?

És muito mais amável e mais amena:

Os ventos sopram os doces botões de maio,

E o verão finda antes que possamos começá-lo:

Por vezes, o sol lança seus cálidos raios,

Ou esconde o rosto dourado sob a névoa;

E tudo que é belo um dia acaba,

Seja por acaso ou por sua natureza;

Mas teu eterno verão não se extingue,

Nem perde o frescor que só tu possuis;

Nem a Morte virá arrastar-te sob a sombra,

Quando os versos te elevarem à eternidade:

      Enquanto a humanidade puder respirar e ver,

     Viverá meu canto, e ele te fará viver.


Aqui, a rima desaparece em favor do ritmo. Os puristas dirão que essa solução não corresponde ao desejo do poeta. Pode ser. Mas,...

Enfim, cabe fazer a pergunta inevitável: traduttore/traditore? Difícil afirmar que sim ou que não – embora os tradutores fiquem furiosos com esse trocadilho. Para Petê Rissati, A arte da tradução pode ser uma arte de ilusão, mas nunca de traição – nós criamos condições para que alguém que não lê em um idioma leia uma obra criada nele. É uma tese. Mais adiante, Rissati evoca o pacto ficcional e afirma que a situação ideal surge no momento em que o leitor concorda que o autor teria escrito daquela maneira se soubesse português e que todo o trabalho de compreensão, desmonte e remontagem do texto visa a maior proximidade possível com o original. E complementa o raciocínio afirmando que salvo as raras exceções (...), somos o elo entre o estrangeiro e o nacional, o alheio e o nosso, o distante e o próximo.


P.S.: Há outras traduções do soneto 18. Aos curiosos, o Google!

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