O cérebro de Mia se parece com um
formigueiro. Centenas de ideias trabalhando simultaneamente, em vai e vem
frenético. Obviamente, essa agitação só existe dentro da cabeça da menina. Mia
tem onze anos, estuda no sexto ano do ensino fundamental, e está naquela fase
em que a aceitação social define o abismo que separa a felicidade e o fim do
mundo. Resultado óbvio: começa a imaginar todo tipo de situação
desfavorável.
Mia, protagonista da série
infantojuvenil O dia que minha vida mudou, escrita por Keka Reis, é uma
espécie de Drama Queen – e se isso não se parecer com um elogio, o melhor a
fazer é trocar de metáforas, de formas de olhar, ou melhor, de ler, e naufragar
nesse absurdo lírico que são as suas divertidas aventuras. Sim, é isso mesmo,
os dois primeiros livros estão imersos no humor e nas confusões.
O colégio organizou uma viagem de
estudos. Em algum momento, a excursão vai
passar por Santa Rita do Passa Quatro, cidade que fica no estado de São Paulo,
região metropolitana de Ribeirão Preto. Lá ocorrerá o desfecho. Mas antes, bem
antes, há um sem número de equívocos, de exageros. Nada de anormal, a vida (seja
adulta, seja pré-adolescente) é assim mesmo, uma linha contínua de desentendimentos.
São dois ônibus, uns cinco ou seis professores
e uma multidão de crianças. A bagunça impera. Simultaneamente, o grupo de whatsapp
produz insuportável pressão psicológica. Todos leem as postagens – e ninguém se
importa em verificar que interesses existem por trás de cada mensagem. O
império das fake news não possui compaixão, sua razão de ser está em causar
algum tipo de terrorismo social.
Tia Ucha vive dizendo que a minha
cabeça pensa rápido demais. Vai longe. Muito longe. Eis o resumo da situação.
Mia, que possui um talento incomum para transformar qualquer incidente em
tragédia, examina os problemas por vários ângulos, se atrapalha nos detalhes,
aumenta as dificuldades, e não chega a qualquer resultado satisfatório. Ou
melhor, acaba com dúvidas maiores do que no início da reflexão.
Surtar surge como uma reação natural
contra as barreiras produzidas pelo mundo objetivo. Mia não foge da regra. Várias
vezes. Nos momentos básicos se tranca no banheiro do ônibus e chora. Chora
várias cataratas do Iguaçu. É lágrima para ninguém colocar defeito. Algumas pessoas
possuem o dom de realizar um tipo especial de milagre: transmutar duas ou três gotas d’água em
tsunami. E se afogam em terreno raso.
Na hora do desespero, arremessar o
celular contra uma árvore pode ser um alívio. Nada contra a modernidade
tecnológica. A dificuldade está nos temores psicológicos. Ter um namorado, com
N maiúsculo, está longe de ser o mar da tranquilidade. A cada instante, um empecilho.
Assistir vídeos educacionais com os pais é um deles, beijar é outro (e se for
ruim?, e se ainda for muito cedo para dar esse passo?).
Ao longe, outro obstáculo. Quem é ELE
(assim mesmo, em caixa alta), o motoqueiro que leva a mãe para comer sushis
fantásticos? Alguma coisa está acontecendo, o que será? Mia tem dificuldade
para entender que ela e a mãe estão vivendo em um tempo de mudanças. Ou melhor,
em um tempo perfeito para trocar de medos. Por exemplo, dormir fora de casa,
longe da proteção materna, assusta. Mas também aponta para um outro caminho, longe da zona de conforto, repleto de boas surpresas.
Também assustam os colegas de sala de
aula (Jade, Júlia F., Enzo, Lico), os professores (Airton, Haydée e Joca), a
orientadora da escola (Penélope). O horror tem várias formas e formulas.
Ninguém está imune. Mas, o maior motivo de apreensão tem o sorriso mais lindo
do mundo e gosta de segurar na mão de Mia. O amor ultrapassa a soma de quatro letras. Namorar
apavora – aos onze e aos sessenta anos. Difícil manter a serenidade nesses
momentos.
O dia em que minha vida mudou por causa
de um pneu furado em Santa Rica do Passa Quatro, assim como O dia em que a
minha vida mudou por causa de um chocolate comprado nas ilhas Malvinas, está
centrado em questões relacionadas ao mundo particular das mulheres. Talvez seja essa a melhor das
inúmeras qualidades dos livros. O mundo literário está repleto de espelhos da
masculinidade. É hora do empoderamento feminino. É hora da inclusão.
Mas também é hora de celebrar os ritos
de passagem, essa estrada estreita que leva a inocência até a maturidade. Também
é hora de perceber que tomar decisão não se resume em eleger A ou B ou C. Os
riscos – em todas as hipóteses – são enormes. Escolher corretamente significa
escapar da areia movediça, dos campos minados, dos perigos do autoengano.
Depois que termina a leitura de O dia
em que minha vida mudou por causa de um pneu furado em Santa Rica do Passa
Quatro, o leitor fica querendo mais. Como personagem, Mia consegue cativar.
Talvez porque (desse jeito dela, um pouco atrapalhado) projeta bons
sentimentos. E nos faz lembrar que houve um tempo em que a vida era mais
divertida e terminava em finais felizes.
PS 1) O primeiro livro da série, O dia
em que a minha vida mudou por causa de um chocolate comprado nas ilhas
Malvinas, que está concorrendo ao Prêmio Jabuti 2018, foi adaptado para o
teatro.
PS 2) O conteúdo dos dois livros ficou
ainda mais bonito com as ilustrações de Vin Vogel.
eu quero um resumo
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