“Assim
aprende a não se apaixonar por coisas pesadas no sábado de manhã”.
Não reconheci Blow-up (Dir.
Michelangelo Antonioni, 1966), filme que recebeu no Brasil um subtítulo tolo: Depois Daquele Beijo. Mesmo tendo visto anteriormente o filme umas duas vezes,
a sensação de novidade esteve presente em cada cena. A exceção foi a frase
pronunciada pela dona do antiquário, quando Thomas comprou uma hélice. No mais,
o estranhamento.
Baseado no conto Las Babas del Diablo, (publicado em Las Armas Secretas), de Julio Cortázar, o filme segue um caminho menos radical. Em lugar da conversa
desencontrada entre os dois narradores do conto, Antonioni optou pelo uso de uma
câmera onisciente e seletiva – maneira com que controlou o tecido ficcional e o
andamento linear. Isso não quer dizer que deixou de lado o intertexto e a
tensão psicológica. Na sala de montagem, o filme foi editado de forma que os
incontáveis cortes nas cenas contribuíssem para criar uma narrativa mais ágil,
menos presa ao descritivo. Isso, infelizmente, não eliminou a sensação de descontinuidade,
principalmente no início do filme.
No conto e no filme, a fotografia está
em primeiro plano. Mas, há diferenças. O enredo foi modificado e o tema,
preservado. Há quem diga que Antonioni não considerou como adequada para aquele
momento uma narrativa que sugere (segundo alguns críticos) um episódio homossexual.
A mudança de foco (centrada em um assassinato) atendeu a diversos interesses comerciais
do filme. A premiação (Grand Prix) no Festival de Cannes e a indicação ao
Oscar de melhor roteiro e melhor direção confirmaram que a escolha foi
acertada. Evidentemente, isso não impediu que houvesse diversas manifestações
contra, principalmente em relação às cenas de nu frontal feminino – que
escandalizaram o moralismo da época.
Michelangelo Antonioni (1912-2007) |
Blow-up também é um retrato de época.
Os valores da classe média, a superficialidade da indústria da moda, o
hedonismo sexual – são itens que atravessam a narrativa e que mostram uma
Londres cosmopolita, distante do provincianismo. Para que essa visão de mundo prevaleça,
o filme conta com a participação especial de várias personalidades da cultura
pop: a modelo Veruschka, a atriz e cantora Jane Birkin, o The Yardbirds (banda de
rock que, depois de inúmeras mutações, se transformaria no Led Zepelin). O laço de fita que embeleza esse pacote é a trilha sonora, composta por Herbie Hancock (que tinha 26
anos na época). Somando os ingredientes o filme se
tornou um sucesso de público e de crítica. Em termos financeiros, custou U$
1,8 milhão e arrecadou U$ 20 milhões.
Thomas (David Hemmings), fotógrafo de
moda, depois de visitar um antiquário, vai passear em um parque quase deserto
de Londres. Ao ver um casal se beijando, resolve fotografá-los. A mulher
(interpretada por Vanessa Redgrave) percebe que a sua intimidade está sendo
invadida, interpela Thomas e exige que ele entregue os negativos das fotos. Ele
recusa. Ela o segue. No estúdio fotográfico, Thomas revela as fotos e as
amplia. Percebe que há algo estranho nas imagens. Acreditando que fotografou um
assassinato, ele retorna ao parque e encontra um corpo sem vida. Como está sem a
câmera, não pode documentar a cena. Ao voltar para casa, descobre que quase
todas as ampliações (blow-ups) foram roubadas. Na terceira vez que vai ao
parque, não consegue encontrar vestígios de que naquele lugar ocorreu uma morte.
Quando está indo embora, vê um grupo de pessoas jogando uma partida de tênis
imaginário.
Alguns teóricos da fotografia argumentam
que se ater apenas ao que está impresso no “frame” é insuficiente para analisar
o que foi capturado pela lente. Há uma história fora da cena que foi
fotografada e há outra história além daquela que compõe a imagem. Uma leitura
integral do conteúdo de cada foto exige que esses três momentos sejam reunidos
e interpretados. A vertigem dos acontecimentos – que atropela a reflexão –
impede que essa leitura “ideal” se concretize no dia a dia. Mas, isso não
significa que deva ser descartada.
A imagem incidental que surge no papel
fotográfico propõe o mistério como ingrediente narrativo. Ao deixar de ser um
voyeur e assumir a “persona” de detetive, Thomas, pela primeira vez, descobre
que o centro do universo está situado em ponto inacessível para o seu ego. Para
tentar reverter essa situação, ambiciona colocar os elementos do quebra-cabeça em
sequência lógica.
Como essa tarefa está interdita, porque
se baseia em uma projeção e em elementos que não estão ao alcance do
entendimento do fotógrafo, ocorre uma espécie de curto-circuito emocional. Para
o egocêntrico, transferir o desejo para alguma coisa fora de si mesmo causa
sofrimento. A trilogia “sexo, drogas e rock and roll” surge como uma válvula de
escape, como um lenitivo para a angústia. Infelizmente, isso nunca se mostra suficiente.
Entre os diversos momentos
significativos do filme, duas cenas se destacam: o concerto de rock e a partida
de tênis.
Pensando em ter encontrado a mulher que
foi fotografada (e que talvez tenha roubado o filme e as ampliações), Thomas
entra em uma sala onde está acontecendo um concerto de rock. Com exceção de um
casal dançando, o público presente ao show do The Yardbirds está apático,
catatônico. Parecem zumbis ou algo similar. Esse mundo congelado se modifica
logo depois que surge um barulho de estática no amplificador. O guitarrista perde o controle emocional e começa a golpear o equipamento. Irritado, destrói a guitarra. Como o individuo que joga o osso para o cachorro, o guitarrista arremessa o
braço do instrumento para o público. A passividade se rompe e todos se
precipitam na direção do troféu. Por sorte ou azar, Thomas consegue pegar o
objeto e foge com ele.
Ollivier Pourriol, comentando essa cena,
observa que Thomas Agarra o objeto precioso antes de sair do meio da multidão
hostil e só escapa dos perseguidores com grande dificuldade. Novamente na rua,
em frente à vitrine de uma loja que exibe manequins de plástico tão inexpressivos
quanto a multidão do começo da cena, toma fôlego, contempla o objeto fora de
contexto, um desventurado braço de guitarra quebrado pelo qual acaba de
arriscar a vida, e larga-o por ali mesmo. Minutos antes era um objeto valioso.
Já não vale mais nada. Um transeunte viu Thomas jogar fora alguma coisa,
aproxima-se, pega o objeto e o dispensa também. Agora não passa de um dejeto.
Uma coisa fora do mundo do desejo.
Segundo a lenda que acompanha Blow-up,
Antonioni era fascinado pela história protagonizada por Peter Townshend, do grupo The Who. Em um dos shows da banda, em junho de 1964, Townshend destruiu uma guitarra Rickenbacker,
além dos amplificadores. Então, como uma homenagem ao gesto, o cineasta incluiu uma simulação do evento no filme.
A cena final de Blow-up não está
ancorada na racionalidade. Para o espectador que percebeu que o filme está
centralizado em temas complicados como a obsessão, a paranoia e a teoria da
conspiração, essa mudança (do realismo convencional para o onirismo) não
constitui uma surpresa. Ao contrário, é uma forma de confirmar que a vida não
está alicerçada na segurança ou na estabilidade. Thomas, em determinado
momento, em consequência de ter dificuldade para entender os acontecimentos que
fotografou, começa a duvidar que possa ter visto (de forma transversal) um
assassinato. Conclui que há a possibilidade de estar influenciado por alguma projeção
mental. Ou por um sonho ruim.
O grupo de pessoas com o rosto maquiado,
espécie de bloco carnavalesco, aparece no início do filme e depois desaparece. A proposta circular se completa na cena final, quando, em uma quadra de
tênis no parque, dois deles começam a jogar uma partida imaginária de tênis. Metáfora
complicada, dessas que parecem querer fugir do entendimento, aponta para o
não-lugar do desejo, bola que se desloca entre um lado e outro da quadra, sem
permanecer em lugar algum, exceto por centésimos de segundos. É esse instante
fugaz que todos desejam transformar em permanente.
Durante o jogo, a bola imaginária escapa
do controle dos dois jogadores e cai longe da quadra. É o ponto fulcral da narrativa. Inquirido,
Thomas precisa descobrir qual é o papel que desempenha nessa história. Se
ignorar os pedidos para “devolver” a bola e for embora, segue a lógica, mas
perde o aspecto lúdico da situação. Em outras palavras, recusa o gozo. Se, como
acontece no filme, depois de hesitar um pouco, decide participar da
brincadeira, pega a “bola” no chão e a joga na direção dos jogadores,
permitindo que a partida recomece, então mostra que a imaginação conseguiu
superar os obstáculos impostos pela racionalidade. E, nesse sentido, o desejo
dissolve a ilusão da autossuficiência masturbatória. O fotógrafo deixa de ser um
hedonista egocêntrico ao perceber que o desejo e o gozo são atividades
coletivas e complementares.
Blow-up, entre outras lições, sugere
ao espectador que quem se apaixona por coisas pesadas no sábado pela manhã não
deve esperar pela entrega imediata. As possibilidades são múltiplas. Muitas vezes
a entrega só acontece na segunda-feira. Em outras, nunca. Em todas, o desejo
adeja – faminto.
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