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quinta-feira, 21 de março de 2019

BLOW-UP - Depois daquele beijo



“Assim aprende a não se apaixonar por coisas pesadas no sábado de manhã”.


Não reconheci Blow-up (Dir. Michelangelo Antonioni, 1966), filme que recebeu no Brasil um subtítulo tolo: Depois Daquele Beijo. Mesmo tendo visto anteriormente o filme umas duas vezes, a sensação de novidade esteve presente em cada cena. A exceção foi a frase pronunciada pela dona do antiquário, quando Thomas comprou uma hélice. No mais, o estranhamento.

Baseado no conto Las Babas del Diablo(publicado em Las Armas Secretas), de Julio Cortázar, o filme segue um caminho menos radical. Em lugar da conversa desencontrada entre os dois narradores do conto, Antonioni optou pelo uso de uma câmera onisciente e seletiva – maneira com que controlou o tecido ficcional e o andamento linear. Isso não quer dizer que deixou de lado o intertexto e a tensão psicológica. Na sala de montagem, o filme foi editado de forma que os incontáveis cortes nas cenas contribuíssem para criar uma narrativa mais ágil, menos presa ao descritivo. Isso, infelizmente, não eliminou a sensação de descontinuidade, principalmente no início do filme.

No conto e no filme, a fotografia está em primeiro plano. Mas, há diferenças. O enredo foi modificado e o tema, preservado. Há quem diga que Antonioni não considerou como adequada para aquele momento uma narrativa que sugere (segundo alguns críticos) um episódio homossexual. A mudança de foco (centrada em um assassinato) atendeu a diversos interesses comerciais do filme. A premiação (Grand Prix) no Festival de Cannes e a indicação ao Oscar de melhor roteiro e melhor direção confirmaram que a escolha foi acertada. Evidentemente, isso não impediu que houvesse diversas manifestações contra, principalmente em relação às cenas de nu frontal feminino – que escandalizaram o moralismo da época.

Michelangelo Antonioni (1912-2007)
Blow-up também é um retrato de época. Os valores da classe média, a superficialidade da indústria da moda, o hedonismo sexual – são itens que atravessam a narrativa e que mostram uma Londres cosmopolita, distante do provincianismo. Para que essa visão de mundo prevaleça, o filme conta com a participação especial de várias personalidades da cultura pop: a modelo Veruschka, a atriz e cantora Jane Birkin, o The Yardbirds (banda de rock que, depois de inúmeras mutações, se transformaria no Led Zepelin). O laço de fita que embeleza esse pacote é a trilha sonora, composta por Herbie Hancock (que tinha 26 anos na época). Somando os ingredientes o filme se tornou um sucesso de público e de crítica. Em termos financeiros, custou U$ 1,8 milhão e arrecadou U$ 20 milhões.

Thomas (David Hemmings), fotógrafo de moda, depois de visitar um antiquário, vai passear em um parque quase deserto de Londres. Ao ver um casal se beijando, resolve fotografá-los. A mulher (interpretada por Vanessa Redgrave) percebe que a sua intimidade está sendo invadida, interpela Thomas e exige que ele entregue os negativos das fotos. Ele recusa. Ela o segue. No estúdio fotográfico, Thomas revela as fotos e as amplia. Percebe que há algo estranho nas imagens. Acreditando que fotografou um assassinato, ele retorna ao parque e encontra um corpo sem vida. Como está sem a câmera, não pode documentar a cena. Ao voltar para casa, descobre que quase todas as ampliações (blow-ups) foram roubadas. Na terceira vez que vai ao parque, não consegue encontrar vestígios de que naquele lugar ocorreu uma morte. Quando está indo embora, vê um grupo de pessoas jogando uma partida de tênis imaginário.

Alguns teóricos da fotografia argumentam que se ater apenas ao que está impresso no “frame” é insuficiente para analisar o que foi capturado pela lente. Há uma história fora da cena que foi fotografada e há outra história além daquela que compõe a imagem. Uma leitura integral do conteúdo de cada foto exige que esses três momentos sejam reunidos e interpretados. A vertigem dos acontecimentos – que atropela a reflexão – impede que essa leitura “ideal” se concretize no dia a dia. Mas, isso não significa que deva ser descartada.

A imagem incidental que surge no papel fotográfico propõe o mistério como ingrediente narrativo. Ao deixar de ser um voyeur e assumir a “persona” de detetive, Thomas, pela primeira vez, descobre que o centro do universo está situado em ponto inacessível para o seu ego. Para tentar reverter essa situação, ambiciona colocar os elementos do quebra-cabeça em sequência lógica.  

Como essa tarefa está interdita, porque se baseia em uma projeção e em elementos que não estão ao alcance do entendimento do fotógrafo, ocorre uma espécie de curto-circuito emocional. Para o egocêntrico, transferir o desejo para alguma coisa fora de si mesmo causa sofrimento. A trilogia “sexo, drogas e rock and roll” surge como uma válvula de escape, como um lenitivo para a angústia. Infelizmente, isso nunca se mostra suficiente.   

Entre os diversos momentos significativos do filme, duas cenas se destacam: o concerto de rock e a partida de tênis.

Pensando em ter encontrado a mulher que foi fotografada (e que talvez tenha roubado o filme e as ampliações), Thomas entra em uma sala onde está acontecendo um concerto de rock. Com exceção de um casal dançando, o público presente ao show do The Yardbirds está apático, catatônico. Parecem zumbis ou algo similar. Esse mundo congelado se modifica logo depois que surge um barulho de estática no amplificador. O guitarrista perde o controle emocional e começa a golpear o equipamento. Irritado, destrói a guitarra. Como o individuo que joga o osso para o cachorro, o guitarrista arremessa o braço do instrumento para o público. A passividade se rompe e todos se precipitam na direção do troféu. Por sorte ou azar, Thomas consegue pegar o objeto e foge com ele.

Ollivier Pourriol, comentando essa cena, observa que Thomas Agarra o objeto precioso antes de sair do meio da multidão hostil e só escapa dos perseguidores com grande dificuldade. Novamente na rua, em frente à vitrine de uma loja que exibe manequins de plástico tão inexpressivos quanto a multidão do começo da cena, toma fôlego, contempla o objeto fora de contexto, um desventurado braço de guitarra quebrado pelo qual acaba de arriscar a vida, e larga-o por ali mesmo. Minutos antes era um objeto valioso. Já não vale mais nada. Um transeunte viu Thomas jogar fora alguma coisa, aproxima-se, pega o objeto e o dispensa também. Agora não passa de um dejeto. Uma coisa fora do mundo do desejo. 

Segundo a lenda que acompanha Blow-up, Antonioni era fascinado pela história protagonizada por Peter Townshend, do grupo The Who. Em um dos shows da banda, em junho de 1964, Townshend destruiu uma guitarra Rickenbacker, além dos amplificadores. Então, como uma homenagem ao gesto, o cineasta incluiu uma simulação do evento no filme.

A cena final de Blow-up não está ancorada na racionalidade. Para o espectador que percebeu que o filme está centralizado em temas complicados como a obsessão, a paranoia e a teoria da conspiração, essa mudança (do realismo convencional para o onirismo) não constitui uma surpresa. Ao contrário, é uma forma de confirmar que a vida não está alicerçada na segurança ou na estabilidade. Thomas, em determinado momento, em consequência de ter dificuldade para entender os acontecimentos que fotografou, começa a duvidar que possa ter visto (de forma transversal) um assassinato. Conclui que há a possibilidade de estar influenciado por alguma projeção mental. Ou por um sonho ruim.

O grupo de pessoas com o rosto maquiado, espécie de bloco carnavalesco, aparece no início do filme e depois desaparece. A proposta circular se completa na cena final, quando, em uma quadra de tênis no parque, dois deles começam a jogar uma partida imaginária de tênis. Metáfora complicada, dessas que parecem querer fugir do entendimento, aponta para o não-lugar do desejo, bola que se desloca entre um lado e outro da quadra, sem permanecer em lugar algum, exceto por centésimos de segundos. É esse instante fugaz que todos desejam transformar em permanente.

Durante o jogo, a bola imaginária escapa do controle dos dois jogadores e cai longe da quadra. É o ponto fulcral da narrativa. Inquirido, Thomas precisa descobrir qual é o papel que desempenha nessa história. Se ignorar os pedidos para “devolver” a bola e for embora, segue a lógica, mas perde o aspecto lúdico da situação. Em outras palavras, recusa o gozo. Se, como acontece no filme, depois de hesitar um pouco, decide participar da brincadeira, pega a “bola” no chão e a joga na direção dos jogadores, permitindo que a partida recomece, então mostra que a imaginação conseguiu superar os obstáculos impostos pela racionalidade. E, nesse sentido, o desejo dissolve a ilusão da autossuficiência masturbatória. O fotógrafo deixa de ser um hedonista egocêntrico ao perceber que o desejo e o gozo são atividades coletivas e complementares. 

Blow-up, entre outras lições, sugere ao espectador que quem se apaixona por coisas pesadas no sábado pela manhã não deve esperar pela entrega imediata. As possibilidades são múltiplas. Muitas vezes a entrega só acontece na segunda-feira. Em outras, nunca. Em todas, o desejo adeja – faminto. 

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