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segunda-feira, 25 de março de 2019

BRASAS E CINZAS

Foto: Marilene Ramlov


O passado muitas vezes se transforma no presente. As lembranças deveriam ser uma dádiva. Deveriam. Não é isso o que acontece. O que ficou para trás costuma voltar em frações, pedaços inesperados. A narrativa vai sendo construída na descontinuidade das elipses.   

(Re)vejo o fogão de lenha crepitando, aquecendo a cozinha da casa grande, lá nos Morrinhos, coração da Coxilha Rica.

                                Foto: Marilene Ramlov
Antes, o terço. Minha avó fazia questão de rezar todos os dias, lá pelas seis horas da tarde, um pouco depois da “Ave Maria” transmitida pela Rádio Clube. Diante do oratório, ficávamos ajoelhados durante uma eternidade. Qualquer movimento era punido com olhares de reprovação. E se havia algo que, naqueles tempos, me causava medo era ver Dona Henriqueta zangada. Isso não impedia, evidentemente, de procurar por coisas que não esqueci nos bolsos da calça ou brincar com algum osso, que imaginava ter a forma de um carrinho. Muitas vezes abandonei a litania para acompanhar a fila indiana das formigas que atravessava a sala e desaparecia em um buraco minúsculo da parede. Em algum momento impreciso a fantasia se dissolvia e a minha voz voltava a acompanhar os infindáveis pai-nossos.

A fé precisava ser provada em jejum. Nem um mísero pedaço de pão era permitido antes das orações. Não adiantava reclamar. Tenha paciência, Deus deve ser atendido primeiro – diziam, como se isso fosse alimento. A solução era engolir o choro e aguardar – o que só servia para aumentar a fome.

Depois da obrigação religiosa, café com mistura. Ninguém “jantava”. Diziam que, à noite, “comida pesada” fazia mal, causava pesadelos, dores de barriga, doenças inimagináveis. Melhor se servir de algo mais leve. Então, tudo se resolvia com copo de leite, bolinhos de coalhada, pão caseiro, queijo, mel e nata. Um pouco de cada, avisava a vó, sempre preocupada com coisas que o menino não entendia.

                                 Foto: Marilene Ramlov
A cozinha era o melhor lugar da casa. Melhor que o quarto. Melhor do que embaixo das cobertas. A geada, lá fora, queimava o capim, dava uma nova cor ao mundo.  O vento conduzia o frio por entre as frestas da casa de madeira. O fogão de lenha nos protegia do clima rigoroso. Foi ali, naquele lugar mágico, que aprendi a ler e a escrever. No princípio, uma cartilha – dessas que constroem a alfabetização através de “b + a = ba” e “Ivo viu a uva”. Depois, quando já conseguia ler e escrever com facilidade, ganhei umas hagiografias, três ou quatro, edições Paulinas. A formação católica estava me empurrando para uma direção que abandonei na primeira oportunidade.

Mais tarde, mais “experiente”, sentado em banquinho “mocho”, ficava ouvindo a conversa dos mais velhos. Depois de algum comentário sobre as notícias ouvidas no rádio, causos de aventura ou de assombração.

                                                        Foto: Marilene Ramlov
A luz do lampião de querosene criava sombras e imagens assustadoras. Isso fazia com que todos ficassem juntos até as oito horas da noite. Era normal dormir cedo. O sono vinha rápido. Na manhã seguinte, tudo era reinício: ordenhar as vacas, alimentar os bichos (galinhas, cavalos, gado), olhar a lavoura, colher frutas, buscar a água no poço.  

Antes de ir deitar alguém sempre olhava o fogão. Era preciso apagar as brasas dormidas que se escondiam no meio das cinzas. O que nunca me contaram é que, tantos anos depois, essas recordações – fagulhas que reúnem o que existiu com o que foi inventado – poderiam causar incêndios incontroláveis.

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