Foto: Marilene Ramlov |
O passado muitas vezes se transforma no
presente. As lembranças deveriam ser uma
dádiva. Deveriam. Não é isso o que acontece. O que ficou para trás costuma
voltar em frações, pedaços inesperados. A narrativa vai sendo construída na descontinuidade
das elipses.
(Re)vejo o fogão de lenha crepitando,
aquecendo a cozinha da casa grande, lá nos Morrinhos, coração da Coxilha Rica.
Foto: Marilene Ramlov |
Antes, o terço. Minha avó fazia questão
de rezar todos os dias, lá pelas seis horas da tarde, um pouco depois da “Ave
Maria” transmitida pela Rádio Clube. Diante do oratório, ficávamos ajoelhados
durante uma eternidade. Qualquer movimento era punido com olhares de reprovação.
E se havia algo que, naqueles tempos, me causava medo era ver Dona Henriqueta zangada.
Isso não impedia, evidentemente, de procurar por coisas que não esqueci nos bolsos
da calça ou brincar com algum osso, que imaginava ter a forma de um carrinho. Muitas
vezes abandonei a litania para acompanhar a fila indiana das formigas que atravessava a sala e desaparecia em um buraco minúsculo da parede. Em algum momento
impreciso a fantasia se dissolvia e a minha voz voltava a acompanhar os
infindáveis pai-nossos.
A fé precisava ser provada em jejum. Nem
um mísero pedaço de pão era permitido antes das orações. Não adiantava
reclamar. Tenha paciência, Deus deve ser atendido primeiro – diziam, como se
isso fosse alimento. A solução era engolir o choro e aguardar – o que só servia
para aumentar a fome.
Depois da obrigação religiosa, café com
mistura. Ninguém “jantava”. Diziam que, à noite, “comida pesada” fazia mal,
causava pesadelos, dores de barriga, doenças inimagináveis. Melhor se servir de
algo mais leve. Então, tudo se resolvia com copo de leite, bolinhos de coalhada,
pão caseiro, queijo, mel e nata. Um pouco de cada, avisava a vó, sempre
preocupada com coisas que o menino não entendia.
Foto: Marilene Ramlov |
A cozinha era o melhor lugar da casa.
Melhor que o quarto. Melhor do que embaixo das cobertas. A geada, lá fora,
queimava o capim, dava uma nova cor ao mundo.
O vento conduzia o frio por entre as frestas da casa de madeira. O fogão de lenha nos protegia do clima rigoroso. Foi ali, naquele lugar mágico,
que aprendi a ler e a escrever. No princípio, uma cartilha – dessas que constroem
a alfabetização através de “b + a = ba” e “Ivo viu a uva”. Depois, quando já
conseguia ler e escrever com facilidade, ganhei umas hagiografias, três ou quatro, edições
Paulinas. A formação católica estava me empurrando para uma direção que
abandonei na primeira oportunidade.
Mais tarde, mais “experiente”, sentado
em banquinho “mocho”, ficava ouvindo a conversa dos mais velhos. Depois de
algum comentário sobre as notícias ouvidas no rádio, causos de aventura ou de
assombração.
Foto: Marilene Ramlov |
A luz do lampião de querosene criava
sombras e imagens assustadoras. Isso fazia com que todos ficassem juntos até as oito horas da noite. Era normal dormir cedo. O sono vinha rápido. Na manhã seguinte, tudo
era reinício: ordenhar as vacas, alimentar os bichos (galinhas, cavalos, gado),
olhar a lavoura, colher frutas, buscar a água no poço.
Antes de ir deitar alguém sempre olhava
o fogão. Era preciso apagar as brasas dormidas que se escondiam no meio das
cinzas. O que nunca me contaram é que, tantos anos depois, essas recordações – fagulhas que reúnem o que existiu com o que foi inventado – poderiam causar incêndios
incontroláveis.
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