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sábado, 28 de novembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXVI)

 


Joguei a toalha no centro do ringue. Ou melhor, fui nocauteado. Confirmando minha teimosia, relutei um pouco antes de aceitar a verdade. Foram necessários vários meses para compreender o quanto sou incompetente. Fracassei como dono de casa. Varrer o apartamento, limpar o box do banheiro, passar cera no piso de parquet, limpar a geladeira: tarefas acima de minhas possibilidades. A vida doméstica é uma floresta cheia de feras selvagens e, para desconforto do meu ego, não nasci para ser domador. Desesperado, gritei por socorro.

Minha Assistente para Assuntos de Limpeza Doméstica (AALD), como se fosse uma heroína de história em quadrinhos, apareceu em cena e rapidamente deixou tudo limpo e brilhando. Concluída a tarefa, depositei em sua mão algumas cédulas, uns trocados para mim, muito dinheiro para ela, comprovando – mais uma vez – a disparidade econômica que nos separa. Isso representa outro nocaute.

A ilustre AALD foi parte da herança que recebi da minha mãe. Durante alguns anos elas trabalharam juntas. As duas possuem uma qualidade (ou defeito) impar: não levam desaforo para casa. E isso significa que cometem sincericídio a todo instante. Apesar dessa característica bizarra (que produz um ritmo estranho, cheio de atritos, faíscas e labaredas), uma suportava as idiossincrasias da outra. Nos momentos mais tensos, alguém (ou uma delas) encontrava o extintor de incêndio e impedia que acontecesse algo mais grave. Coisas da amizade.  

E assim se passavam os dias. Infelizmente, as dificuldades econômicas exigiram novas fontes de renda para a AALD. Sem alternativa, e querendo colaborar, adotei-a – uma vez a cada quinze dias. E não estou arrependido. Quer dizer,...

A AALD gosta de conversar e isso sempre foi um entrave nas nossas relações de trabalho. Em tempos pandêmicos, muito mais. Normalmente me isolo no escritório e deixo o resto do apartamento aos seus cuidados. A ilusão de que não serei interrompido nunca passou de ilusão. Na última vez que ela limpou o apartamento, eu estava tentando assistir uma live. Fui interrompido várias vezes. Obviamente relevei a situação. Sempre é possível ver esse tipo de programa em sessões post-mortem. Não é a mesma coisa, mas...

Nós dois, de máscaras, as vozes abafadas, comentando as notícias da semana ou falando mal dos conhecidos constituirá uma boa lembrança desses tempos sombrios. Não perdoamos ninguém – inclusive porque poucas coisas nesse Brasil deitado em berço esplendido e que cultiva a idiotice pré-histórica merecem perdão.

Depois que AALD terminou o serviço e foi embora, iniciei a minha tarefa: colocar algumas coisas no lugar. Ou melhor, no lugar que eu considero que devem ficar. Não é muita coisa, o suficiente para me obrigar a revistar o apartamento. Uma janela mal fechada, a vassoura esquecida na sala, as toalhas erradas no banheiro, a torneira pingando na pia, a porta da geladeira encostada. Nenhuma transgressão grave, mas uma desordem que me incomoda. E que faço questão de corrigir.  

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Não cultivo sentimentos religiosos, mas acredito em anjos da guarda. Em diversos momentos da vida, quando tudo parecia estar à beira do abismo, fui salvo pelo inesperado, por alguém que me estendeu a mão. Quem tem amigo não morre pagão, dizia a minha avó. A AALD é um dos meus anjos da guarda.


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