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sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXVII)

 


No poema One art, Elizabeth Bishop escreveu que the art of losing’s not too hard to master / though it may look like (Write it!) like disaster, versos que podem ser traduzidos informalmente como a arte de perder não chega a ser mistério / Por mais que pareça [escreva isso!] um desastre.

Lembrei-me desse trecho do poema em uma das manhãs da última semana. Minha mãe, 81 anos, precisa fazer prova de vida no INSS. Ou seja, deve convencer o governo que não está morta. Ocorre que o seu estado de saúde é precário e o bom senso recomenda procurar por alternativas para cumprir com essa formalidade burocrática.

Liguei para o número telefônico 135 – conforme me foi recomendado na instituição bancária onde ela recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Depois da inevitável espera, a máquina que me atendeu solicitou o número do CPF da requerente e informou que deveria selecionar o tipo de atendimento desejado (números entre 1 e 9). Desliguei e fui procurar pela Carteira de Identidade da mãe. Lá consta o número do Cadastro de Pessoa Física.

Não encontrei. Revirei pastas e caixas de sapato onde guardo as quinquilharias familiares. Não sei o que a cédula identitária estaria fazendo naqueles lugares, mas revistei vários álbuns de fotografias. Lembranças voltaram a me assombrar, mas fingi que não era comigo, o que queria era encontrar o documento. Esvaziei duas gavetas – foi bom fazer isso, coloquei em um saco de lixo centenas de comprovantes de pagamento bancário e alguns panfletos comerciais; papéis inúteis que estavam fazendo volume e tinham perdido a utilidade.

Cansado, sentei no sofá do escritório e fiquei olhando para as estantes, na esperança de que os livros pudessem fornecer alguma pista do desaparecido. Esforço inútil. Nenhuma possibilidade de encontrar o que estava procurando. E agora?, perguntei para mim mesmo, misturando perplexidade e desespero.

Perder livros, documentos, chaves, cartão de crédito, dinheiro – tenho um dom natural para esse tipo de coisa. Se fosse contar quantas vezes isso aconteceu, escreveria um livro. Evidentemente, depois de algum tempo e grandes incômodos, recuperei quase todas as perdas. Posso até dizer que o estrago foi mínimo. O que sempre me incomodou foi o correr atrás do prejuízo, o medo de estar diante de um beco sem saída.

Edgar Allan Poe escreveu um conto mágico, A Carta Roubada. Várias pessoas procurando por algo que estava diante dos olhos. É um caso clássico de cegueira coletiva, ninguém consegue enxergar a obviedade. De forma similar, foi o que aconteceu comigo. Alguns meses atrás, em função de outro processo administrativo no INSS, precisei separar uma série de notas fiscais relacionadas com os gastos da mãe (remédios, fraldas, compras de supermercado, recibos de aluguel, água e luz). Coloquei tudo dentro de um envelope. Junto com a papelada, a Carteira de Identidade.

Esse envelope estava o tempo todo na minha frente, em uma das estantes, a dos livros de História. Eu não fui capaz de o ver. Tampouco lembrei que havia incluído a CI naquele grupo de documentos.

Ao alivio de encontrar a Carteira de Identidade, seguiram-se as inevitáveis confusões ao tentar agendar a prova de vida. Essas trapalhadas contarei depois.      


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