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segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

O DUPLO E A LITERATURA - uma introdução

 


Em algum momento de Morte no Nilo, de Agatha Christie, Hercule Poirot cita a história bíblica do homem pobre e do homem rico. Ao oferecer banquete para alguns convidados, o homem rico – que tinha um grande rebanho de ovinos – resolve sacrificar a única ovelha do homem pobre. É o profeta Nathan que conta essa parábola para Davi, rei de Israel. Mas não se trata de discussão política e econômica sobre as relações de poder e a opressão (embora essa análise não possa ser descartada). Seu entendimento relaciona-se com a questão moral e serve de censura à atitude de mandar Urias para a guerra, deixando Betsabéia livre para que o rei pudesse desposá-la (II Samuel 12:1-15).

Sincronicamente, a situação encontra o seu reflexo especular em um episódio da mitologia grega. Zeus, o senhor do Olimpo, tinha uma libido muito forte e para desespero de Hera, sua esposa, frequentemente cometia adultério.  Em determinado momento se apaixonou por Alcmena, esposa de Anfitrião. Antes que o casamento fosse consumado, Anfitrião, na companhia de seu servo, Sósia, partiu para a guerra contra Tebas. Zeus, com a ajuda de Hermes, o mensageiro dos deuses, aproveitou a oportunidade. Os dois assumem a identidade dos ausentes. Enquanto Zeus (falso Anfitrião) se diverte no leito conjugal, Hermes (falso Sósia) fica na porta da casa, evitando que os amantes sejam perturbados. Alcmena, incapaz de distinguir quem é quem, faz as vontades daquele que imagina ser o marido. Na noite seguinte, retorna para Micenas o autêntico Anfitrião disposto a dar prosseguimento à vida conjugal. Os gêmeos que nasceram desses dois relacionamentos, Herácles (filho de Zeus) e Íficles (filho de Anfitrião), contribuíram para ampliar o conceito do herói mitológico (mas a participação de irmão “mortal” em algumas aventuras é quase insignificante). O episódio, em tom farsesco, está relatado na peça teatral Amphitruo, do escritor latino Titus Maccius Plautus (254 a.C – 184 a.C).

Com o passar do tempo, o substantivo anfitrião se tornou sinônimo de “aquele que recebe em sua casa” e sósia expressa “aquele que é parecido, que se confunde com o outro”. Foi partindo dessa visão que o mexicano Ignacio Padilha escreveu o romance Amphitryon, que está repleto de falsários, réplicas, simulacros, trapaças e situações confusas. O real fica embaçado e algumas coisas perdem o significado original.                                  

Em O Visconde de Bragelonne, a terceira parte do épico Os três mosqueteiros, Alexandre Dumas (père) utiliza-se de duas narrativas simultâneas e que espelham muitas outras. Raoul de Bragelonne, filho de Athos com a Duquesa de Chevreuse, é enviado para a guerra (onde morre) para que o rei Luis XIV possa desfrutar da amante, Louise de La Vallière (noiva de Raoul). Em paralelo corre a história de Philip, irmão gêmeo de Luis XIV e que está preso em um calabouço. A segunda história gerou várias adaptações cinematográficas, sendo a mais conhecida O homem da máscara de ferro (The man in the iron mask. Dir. Randall Wallace, 1998).

Em todas essas histórias, onde temas e nomes são replicados em diferentes circunstâncias, o duplo e a gemelaridade compõem um cenário bastante curioso – muitas vezes sem estar ligado com alguma relação sanguínea ou amorosa. Literariamente, o doppelgänger (aquele que caminha ao lado), a síndrome de Capgras (ilusão de que o cônjuge – ou algum conhecido – foi substituído por um impostor idêntico) e o Unheimliche (conceito freudiano para o que é ou causa estranhamento) fornecem elementos para delírios ficcionais bastante interessantes, como pode ser comprovado, por exemplo, em O duplo (Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski), O homem duplicado (José Saramago), O médico e o monstro (Robert Louis Stevenson), O talentoso Ripley (Patricia Highsmith) e o conto O espelho (Machado de Assis).  

 

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