Domingo é uma soma de clichês. Dormir até tarde, acordar de ressaca, almoço em família, churrasco e cerveja, briga em família, futebol na televisão, amaldiçoar a segunda-feira. Aparentemente são mínimas as variações da ladainha dominical.
Embaixo dessa superfície tranquila, muita turbulência. O domingo nunca foi um momento de descanso, de preparação para as tempestades que se iniciam no dia seguinte. Algumas estatísticas indicam que o percentual de suicídios aumenta consideravelmente. A solidão, os sentimentos depressivos e a sensação de não pertencimento se acentuam. Também são significativos os números relacionados com acidentes de trânsito e violência doméstica (contra mulheres, crianças e idosos).
Nos 15 contos de Dias de domingo, organizados por Eugênia Ribas-Vieira, a tentativa de fornecer uma visão do que significa esse dia da semana não cumpre – integralmente – com o seu propósito, mas aborda questões relevantes: amores mal resolvidos, o passado, as pessoas e os lugares que desapareceram de repente, a vida que poderia ter sido e que – por algum motivo obscuro – tomou rumo inesperado, as complicações que envolvem o sexo.
Em Como se nada, como se tudo, provavelmente o texto mais poético do livro, um grande amor do passado é revivido sem acumular mágoas. A narradora, com carinho e bom humor, faz, através da escrita, um passeio nostálgico pelo relacionamento que, por motivos aleatórios, não deu certo.
Você foi embora com motivos e avenidas. Primeiro pra ficar com uma moça de poucos sapatos e depois ficar com uma de muitos sapatos. Eu, de All Star, namorei você em dois ou três rapazes, e cheguei a repetir roteiros inteiros, como naquele episódio em que nadamos naquele lago de bacana. Eu nunca entendi eu não continuar sendo pra sempre o seu projeto de cauda longa, mas minha analista diz que preciso aprender a ser um amor, e, não, o amor. “Só um?”, eu pergunto. “Só um não no sentido de ser pouco”, ela diz. “Mas de não ser única”. Que difícil isso. De não ser a única e nem a mais importante.
A dos domingos, pode ser?O passado também é revisitado por Julia Wähmann, em Fui a Paris e comprei um piano, mas em outro estágio – a infância como metáfora do lugar onde se está protegido de todos os males do mundo. Com a inevitável passagem do tempo e a morte do avô, elo de ligação familiar, as férias no sítio são substituídas por outras formas de diversão – embora continuem na memória como momentos ingênuos em que predominava o afeto e algo que talvez fosse felicidade.
Quando caía a luz e acendíamos nossas lanternas, vovô enxugava os olhos molhados, sorria miúdo e ordenava o descanso dos fiéis soldados. Tia Lurdinha nos perguntava sobre tudo depois, tomando notas num caderno. Valtinho floreava o que tínhamos escutado. Levei anos para entender que ela tentava, por meio da dupla de sobrinhos, guardar as memórias que não conseguia arrancar do pai.
Outra narrativa que chama a atenção é Messias, da Cintia Moscovich. Em um almoço familiar, os filhos querem dar um filhote de cachorro à mãe em substituição ao animal anterior – que faleceu. A suave interação entre a linguagem e o preparo dos alimentos fornece ao leitor sabores e sentimentos que se confundem com essa felicidade que é o estar junto, independente do motivo.
Azeite e ovos foram tomando discreto corpo, homogêneo em sua tonalidade de sol, um tom dourado que se parecia à pelagem do cachorrinho, tão macia; aos poucos, sem parar de mexer, fui acrescentando diminutos fios de óleo, e incorporava tudo com movimentos circulares do garfo, esmagando alguns pedacinhos reticentes da gema cozida contra as bordas do prato, imaginando os irmãozinhos de ninhada de Messias, a maldade que havia sofrido a mãe dele, a imensa mágoa e o espanto de ser arrojado num lugar distante.
Os outros contos são assim assim, uns um pouco melhores do que os outros. Falta sabor na cronologia existencial proposta por Sérgio Rodrigues (Domingo de manhã); Isabel, de Noemi Jaffe, tem aspecto de déjà vu; o texto de Marcelo Ferroni (Suéter) não passa de um drama homossexual sem grande relevância; Nossos Ossos, da Giovana Madalosso, está concentrado no reencontro entre pai e filha, uma cumplicidade que vai se reconhecendo (e, simultaneamente, se perdendo) com o passar dos dias; Carlos Eduardo Pereira aborda uma utopia, o dia em que os trabalhadores deixarão de descer o morro para suavizar a vida dos patrões brancos e ricos (Um domingo sem fim); uma mulher passa algum tempo dentro de uma livraria (Biografia e correspondência, de Adriana Lunardi); Em Um bom amigo, o texto mais longo do livro, Juliana Leite aborda a aurora de um casal de velhos que, em algum momento, poderia ter tido uma relação amorosa, mas que, por algo que fugiu do controle, só restou a amizade e o amparo mútuo; Domingo, da Veronica Stigger, é insípido; Marcelo Maluf, com Absolutamente, trata do estranhamento; Manejo, de Mauricio de Almeida, projeta uma boa história, mas mistura alhos com bugalhos e trunca a leitura; Em Eric, Tobias Carvalho apresenta mais do mesmo, em versão homossexual; Abstração informal, de Adriana Lisboa, não empolga.
É isso, Dias de domingo contém quatro ou cinco contos de excelente qualidade.
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