Depois de longa estiagem, está surgindo uma nova geração de artistas plásticos na Região Serrana. A efervescência dos anos 80 do século passado (quando Elionir Camargo Martins, através da Galeria Toulouse, se projetava como aglutinadora da produção artística) ficou no passado. Pintores como Clênio Souza, Adilson Guanabara, Rudimar Cifuentes e André Fischer, entre outros, foram substituídos por alguns paisagistas que, entre uma tela e outra, trocam de lugar os pinheiros, os riachos e as casinhas bonitinhas e imaginam que estão sendo criativos. Um olhar mais atento revela, nesses trabalhos, erros grosseiros de perspectiva, proporcionalidade, profundidade e cores. Mas isso parece não possuir a mínima importância, visto que a ideia básica é transformar a pintura em decoração – de preferência na parede no escritório de um amigo ou na casa de algum simpático burguês.
A exposição coletiva Só pelo pinhãozinho, que pode ser visitada no Centro Cultural Vidal Ramos – SESC (Rua Vidal Ramos Júnior, 101-107), propõe um olhar diverso da estagnação, comprovando que é preciso deixar o medo de lado quando se decide transitar por um terreno cheio de armadilhas. Tendo como proposta de trabalho o pinhão e a araucária, temas desenvolvidos nos anos 80/90 por Kátia Lisboa (1953-2018), os artistas que integram o grupo A Catequese adotaram vários suportes de transmissão artística (óleo sobre tela, tinta acrílica, colagem, vídeo, instalação). Essa mistura produz um curto circuito no olhar do espectador e que se manifesta através da vertigem que oscila entre a consciência ecológica e a paródia artística. Simultaneamente, há o acenar para uma linguagem que quer se distanciar do convencional e do esteticamente comportado.
Uma síntese desse pensamento está no óleo sobre tela apresentado por Thomas Fernando (A vida é dura), composto por figuras recortadas de outros contextos e que, ao serem reunidas, produzem um estranhamento difícil de ser explicado. Sem se importar com a proporção, o artista povoou a tela com aves, serpente, verme, ovo que parece prestes a eclodir no ninho. Tudo está iluminado por uma lua cheia. Ao adotar o surrealismo que abusa do colorido (a ponto de ofuscar a visão), talvez, talvez acene para questões que não estão explícitas (e que não são de fácil percepção).
Thomas Fernando, A vida é dura, óleo sobre tela |
Em No Calçadão vem que tem, de Lucas Speranza, a colagem e a projeção caricata das figuras revela uma visão pouco simpática da ocupação espacial no centro da cidade. Talvez seja a proposta com maior impacto político, porque mostra o embate entre o cenário plúmbeo (que oferece tudo a preços imbatíveis e coloridos) e as figuras humanas de lado – que parecem ter medo de encarar o futuro. A presença repressiva é outro elemento que causa angústia e dor. Como pano de fundo, emoldurando a tela, muitos volantes de loteria, quiçá acenando para o trocadilho volátil (esperança/Speranza).
Lucas Speranza, No calçadão vem que tem, diversas técnicas |
Rodrigo da Luz (A cobiça) preferiu adotar o embate entre as cores quentes e frias. Ao reunir a luz excessiva com a disputa pelos frutos da terra traduziu a luta que conceitua a crueldade que envolve a natureza. A disposição das figuras, de certa forma, indica o desequilíbrio do combate. A busca por uma representação que forneça legitimidade à ideia expande o aspecto alegórico.
Rodrigo Luz, A cobiça, óleo sobre tela |
Em abordagem pictórica oposta, Hércules Scapo (Solstício de inverno) aposta no sombrio. A distância imaginária (porque só existe no espaço ficcional) entre os pinheirais e os automóveis acena para um mundo em transformação – e essa mudança nem sempre se concretiza como qualidade de vida. Semelhante ao cenário de alguma HQ distópica, a tela acena para a solidão, para um mundo fadado à desolação.
Hércules Scapo, Solstício de inverno, óleo sobre tela |
As pinceladas propositalmente borradas e as personagens sem identidade (porque distantes, porque vagam sem destino) de Marina Rodrigues (Cotidiano) instituem um cenário que se aproxima (mesmo que superficialmente) da perda da percepção social. Tudo, inclusive o céu, parece irreal, um conjunto de figuras que perdeu o sentido, porque dispostas ad hoc. Mas, talvez seja essa ambientação pouco realista que produz a inquietação, o se perguntar por que tudo está ali e de uma forma antipoética.
Marina Rodrigues, Cotidiano, acrílica sobre tela |
Marcelo Rengueira (Entre o começo e o fim) também se afasta do realismo, mas com outro propósito. A utilização de animais que não fazem parte dos campos de araucária provoca uma reflexão mais apurada e que se “reflete” na sombra – que parece acenar para o passado, para um mundo onde a vida humana (simbolizada pelo sol) começa a ser substituída por imagens transitórias.
Marcelo Rengueira, Entre o começo e o fim, acrílica sobre tela |
O painel (de autoria coletiva) As gralhas consiste em variação sobre o mesmo tema. Mesmo como uma retomada dos ideais ecológicos, do contato com Gaia (a mãe terra), parece estar fora do contexto. Diante dos outros trabalhos, mostra um deslocamento que soa confuso.
Criação coletiva, As gralhas, óleo sobre tela |
A grimpa (autoria coletiva) evoca o escândalo proposto pelo artista conceitual Maurizio Cattelan, que, em 2019, colou com fita adesiva uma banana na parede de uma galeria italiana e vendeu a “escultura” por US$ 120.000. Trata-se de uma discussão (muito confusa) sobre a perenidade da obra artística, visto que a vida útil desse tipo de objeto não será longa. Por outro lado, em tempos de reprodutividade técnica, onde tudo pode ser replicado a cada instante, acena para uma pergunta inquietante: ainda é viável conservar um objeto artístico por séculos?
Criação coletiva, A grimpa, obra conceitual |
Diante do conjunto proposto pela exposição Só pelo pinhãozinho, que mostra inúmeras formas de “conversar” com o tema, cabe a pergunta: faltou alguma coisa? A resposta é simples: sim. Quase todas as propostas estão voltadas ao ambiente urbano, esquecendo questões como o desmatamento predatório das araucárias, as serrarias, a população que se deslocou do ambiente rural para a periferia da cidade. Alguém há de responder a este questionamento dizendo que a arte não pode/deve ter compromissos ou posicionamentos políticos. É uma forma de perceber a situação. Embora seja muito simplista. Em outras palavras, ferramentas como o surrealismo, a alegoria e a paródia não são (nunca serão) capazes de explicar de forma eficiente os diversos fatores sociais e históricos que estão medindo forças.
Enfim, somando todos os elementos, deve-se destacar o esforço do grupo A Catequese em propor olhares menos apegados ao conservadorismo estético, projetando possibilidades bastante significativas para as artes plásticas da Região Serrana. Que venham novas exposições, novas provocações, novos espantos!
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