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terça-feira, 22 de novembro de 2022

LIÇÕES DE GEOGRAFIA



Não conheço a cidade em que moro. Não conheço o município em que ela está situada (o maior de Santa Catarina: 2.644,313 km²). Não tenho constrangimento em dizer/escrever isto – embora tenha vivido em Nossa Senhora dos Prazeres mais de 90% de minha vida.

Em alguns momentos pensei que era possível me deslocar pelo corpo da cidade sem correr o risco de estar perdido. Estava enganado. Quem segue a mesma trilha todos os dias aposta na estabilidade, mas elimina a possibilidade de fornecer surpresas ao olhar.

Nesses anos todos, talvez para diminuir essa falta de percepção com o mundo que me rodeia, recebi algumas lições de geografia e que me ajudaram na tentativa de entender a cidade. Isso não aconteceu no colégio ou na universidade. Foram episódios prosaicos – sintomaticamente, mais educativos.

O primeiro professor foi o meu pai. Ele trabalhava no engarrafamento de bebidas Gerson Vargas (Rua Benjamin Constant) e percorria a cidade entregando os pedidos. Nos sábados eu o acompanhava. Contrário a distribuir mesada para os filhos, ele defendia a tese de que somente quem trabalhava pode desfrutar dos prazeres da vida. No meu caso, ir à matinê do Cine Tamoio, aos domingos. Ir ao centro da cidade – e se espantar com as vitrines das lojas, cobiçando roupas e brinquedos que estavam fora do alcance econômico da família – era sempre bom. Principalmente porque naquele tempo o meu mundo estava reduzido ao trajeto entre a nossa casa (Rua José Berlim) e o Centro Educacional Vidal Ramos Júnior (Rua Frei Rogério). Quando conheci os bairros Triângulo, Copacabana, Ferrovia, Caça e Tiro e Santa Helena, entre outros, meus limites espaciais foram ampliados exponencialmente. Percebi que não existiam obstáculos para o Chevrolet que o pai dirigia.

Minha mãe também me mostrou que o campo de ação está conectado com vida. Depois que se separou do marido, deu vazão ao instinto cigano e carregou os filhos para dezenas de lugares e bairros. Cohab (que depois passaria a se chamar Petrópolis), Morro do Posto, Centro (várias vezes), Várzea, Santa Rita, Brusque (várias vezes), Coral (duas vezes). Para ela, a beleza da vida era constituída de movimento, mistério e desassossego. Algumas vezes a mudança era fruto de desentendimento com vizinhos; em outras sequer arrumava desculpa para se deslocar. Em uma dessas ocasiões só fui conhecer o novo endereço quase quinze dias depois.

Meu terceiro professor foi João Cardoso. Vice-Prefeito, na década de 80 do século passado, ele se desentendeu com o titular do cargo e, por razões de segurança, montou gabinete no edifício Luciane (Rua Correia Pinto). Colocado à disposição, lá fiquei por alguns meses. Certo dia, em uma dessas conversas que ninguém sabe como começa, ele me perguntou se eu conhecia o perímetro urbano. Com a soberba dos jovens, respondi que sim. Ele me olhou com desdém e pediu para que o acompanhasse. Não foi um passeio turístico. Foi uma aula prática de sociologia. Em um fusquinha azul (não tenho certeza se era essa a cor), fomos até lugares que nunca imaginei existir. Sem fazer discurso ou propor uma discussão moral, João me mostrou o vórtice de horror. Ou uma fratura exposta. Moradias em áreas verdes, em regiões alagadas, construídas com materiais precários, prestes a desabar. Ruas de chão batido em que o número de buracos era superior à área pavimentada. Ausência de energia elétrica e água potável. A periferia (e seus escombros) produziu um choque emocional – do qual ainda não me recuperei.

Meu quarto professor foi Moisés Savian. Plantonista na Secretaria de Agricultura, o acompanhei pelas estradas do interior do município. Em alguns momentos (e não foram poucos) nos alimentamos de poeira. Mas também tivemos compensações. Pude rever a Coxilha Rica (Morrinhos, São Jorge), região em que meus avós tinham uma propriedade. Conheci Três Árvores, Macacos, Índios, Cadeado – locais onde foram realizadas reuniões e acordos. Essas viagens abriram – para mim – outra dimensão no município. Acostumado a viver na segurança assegurada pela região central da cidade, fiquei perplexo com a beleza da paisagem e sem entender a razão de ter me mantido afastado daquilo tudo por tanto tempo. Nos últimos anos, voltei ao paraíso diversas vezes.

Algumas pessoas perguntam sobre o que me motiva continuar morando em Lages. Não tenho resposta convincente para isso. Não posso usar como desculpa o filho, o emprego, o sossego, o masoquismo ou a lenda popular que diz que quem bebe da água do rio das Caveiras nunca mais se liberta. Citar qualquer um desses itens seria falsificar a verdade.

O que interessa é que eu me sinto bem morando na terra em que as minhas histórias adquiriram consistência e que comemora o seu 256º aniversário de fundação no dia 22 de novembro. Isso parece ser o suficiente.

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