O primeiro de janeiro deveria ser
proibido, e o dois de janeiro também. O ano deveria começar em vinte e um de
março. Não haveria surpresa se fosse um brasileiro o autor dessas três frases.
No imaginário popular, o país só começa a funcionar depois do Carnaval. No
entanto, a declaração é do Pepe Carvalho, personagem de vários romances
policiais do espanhol Manuel Vásquez Montalbán. Evidentemente, ele se expressa
para caracterizar uma situação particular: a enorme ressaca alcoólica decorrente
da mudança de calendário no longínquo ano de 1984.
Trazendo esse pensamento para o momento atual – em que a Terra efetuou mais uma rotação em torno do Sol –, podemos dizer que, apesar de todas as tragédias (guerras, crise climática, preconceitos diversos, fanatismo religioso,...), ainda estamos vivos. Não sei se isso justifica pular sete ondas no mar, beber inúmeras taças de vinho, vestir roupa branca, fingir afeto, comer lentilhas, romãs, uvas,... Tampouco é possível encontrar motivos para suportar as previsões sobre o futuro, as listas dos melhores e dos piores, e as retrospectivas – momentos que tentam transformar o processo histórico em faits divers.
Viver não é preciso, navegar é preciso, diria o poeta português, aquele que sobreviveu a inúmeras noites festivas em completa solidão. No outro extremo da corda encontramos Guimarães Rosa, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e dai afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem...
No filme A Encruzilhada (Crossroads. Dir. Walter Hill, 1986), um estudante de guitarra procura por uma canção perdida de Robert Johnson. A metáfora musical propõe um dilema: será que o preço a pagar vale o que se recebe em troca? Só encontra a resposta quem escolhe trilhar um dos caminhos da bifurcação. Essa atitude determina os acontecimentos futuros. Por isso (e mais algumas coisas) cabe seguir na procura. Sem expectativas ou ilusões, misturando alegria e medo. E com as armas que estão à disposição, sejam elas o tacape ou o míssil nuclear.
Comprei espumantes, cervejas, refrigerantes, isotônicos, garrafas de água mineral. Tudo no plural. O excesso é um dos sinônimos do viver. Se não for, deveria ser. Salvo engano, estou tentando consumir todas essas bebidas sem grandes preocupações hepáticas ou diabéticas. Quase escrevi diabólicas – tenho dificuldades para fugir dos trocadilhos ruins. Aliás, não é só nessa questão que encontro complicações. No tropeçar diário, a serenidade parece estar se distanciando a cada segundo. Nasci com pouca paciência.
O início do ano é uma convenção. Não tem o mínimo significado para algumas culturas. Pelo calendário lunar chinês, o ano 4722 começa em 10 de fevereiro. Será conhecido como o ano do dragão (do tipo madeira yang, uma dessas classificações complicadas do povo asiático). Previsões astronômicas e astrológicas indicam que haverá o cuspir de fogo em pessoas e cidades que negarem as qualidades mágicas (ou ilusórias) do animal mitológico. Vou perguntar a Daenerys Targaryen, Harry Potter, Lisbeth Salander, Lui Nakazawa ou para algum monge tibetano o que preciso fazer para conseguir um desses animais de estimação.
Enquanto isso não acontece, e não for
possível acelerar o tempo da imaginação, ciente de que cada história é um
acontecimento único, intransferível, e que ninguém herda a sabedoria, resta
olhar para os erros cometidos no passado e receber os novos desastres de braços
abertos. A vida não se resume em abraços, mas pode ser uma forma de iniciar o
ano, qualquer ano – se você for otimista. Não é o meu caso.
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