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quarta-feira, 10 de abril de 2024

COELHO MALDITO

 


Tornou-se prática comum elogiar livro ruim. Influenciadores literários virtuais (ou não), principalmente aqueles que são “parceiros” das editoras, se desdobram em encontrar (e anunciar) qualidades nos livros que recebem. Alguns, os mais preguiçosos, nem isso. Preferem copiar algum trecho da orelha ou da quarta capa e publicar como se fosse uma crítica literária altamente qualificada.

Os contos da sul-coreana Bora Chung foram recebidos no Brasil com fogos de artifício e elogios tão retumbantes que parece que a escritora está prestes a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Como diriam os antigos, devagar com o andor, que o santo é de barro. A tendência editorial, que aposta na literatura que reúne no mesmo balaio o terror gótico e a fantasia (muitas vezes disfarçada de realismo mágico), não consegue perceber que Coelho Maldito (editora Alfaguara, 2024) é um livro pavoroso – e, para que não reste dúvida, isto não é um elogio.

A retomada de alguns temas conhecidos (duplo, rebelião dos robôs, escatologia, morbidez, fantasmas, magia negra, vingança, incesto, ganância, antropomorfismo) nem sequer caminha na direção da originalidade. O que se percebe é que algumas das narrativas foram modernizadas, adotaram o verniz da sociedade tecnológica, mas sem abdicar do antigo propósito: causar medo. Outras adotam o discurso das lendas asiáticas, onde o paradoxo ganha substância e dilui o real. Nesse tipo de literatura que flerta com o trash, a ciência, em lugar de produzir segurança, atemoriza; a religião não leva à serenidade, mas ao pavor; as relações comerciais não produzem bem-estar social – corrupção é a sua característica mais expressiva. Tudo é frágil, apenas o horror se mostra palpável.

A ausência de racionalidade não se cansa de proclamar as ações violentas através de descrições exaustivas sobre sangue, fezes, escuridão, tortura, mutilação, crianças imaginárias. Os espaços onde acontecem as narrativas são estranhos: banheiro, dentro de um carro que está afundando na lama, hospital, florestas, caverna, apartamentos inóspitos. Tudo contribui para causar sentimentos desagradáveis e aflição.  

Quase todas as dez histórias transitam em torno de personagens femininas. Mas, não se trata de traduzir as estruturas narrativas em defesa do feminismo ou do matriarcado. É o contrário. As principais questões das mulheres são substituídas por efeitos dispersivos e que visam chocar, ampliar o desconforto. Em alguns casos, o sobrenatural se impõe (A armadilha, Lar, doce lar); em outros, as violências cometidas por outras mulheres estabelecem a competividade como estratégia pontual (A cabeça, Dedos gélidos, Menorreia).

O conto mais angustiante, e o mais longo, Cicatriz, mostra a trajetória de um menino que é sequestrado e mantido isolado em uma caverna escura. É constantemente bicado por alguma entidade não nominada. A liberdade acontece em algum momento, vários anos depois. Como o rapaz não encontra correspondência no mundo (uma variação grosseira de Kaspar Hauser), torna-se um lutador de rua. Um homem, também inominado, agencia esses combates – e o controla apertando o seu pescoço, onde há uma cicatriz (uma espécie de calcanhar de Aquiles). A salvação nas lutas em que está em desvantagem surge com elementos do fantástico: braços que empedram, asas que aparecem inesperadamente. No momento em que deixa de ser útil é abandonado na floresta. O que se segue, seguindo o formato das narrativas circulares, procura explicar os diversos pontos em aberto na narrativa – uma espécie de começo e fim complementares, mas pontuado pelo absurdo. E com um agravante, o final evoca alguma lenda sul-coreana obscura e isso torna a narrativa mais bizarra, como se tudo não passasse de um pesadelo.

A morbidez, quando repetitiva, em lugar de produzir uma reflexão sobre a fragilidade humana, causa cansaço e tédio. E produz uma literatura que se afasta do afeto e exalta a brutalidade, além de estimular dramas imaginários, ignorar a realidade e convidar ao exercício da apatia sobre algumas questões políticas. Todas essas características, espelhadas nas formas literárias, contribuem, a médio prazo, para favorecer os abusos do autoritarismo e a consequente desumanização dos indivíduos.     


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