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sábado, 30 de março de 2024

A CORNETA

   

 

Sem se ater aos esquemas rígidos do realismo, que exigem verossimilhança de todos os acontecimentos narrados, o romance A corneta, de Leonora Carrington (1917-2011), se concentra nas peripécias de Marian Leatherby, 92 anos – que foi internada pela família em uma instituição para senhoras idosas.

É um texto anárquico, repleto de esquisitices, de onirismo. Mais do que um recorte de um mundo em transformação, onde tudo se mostra absurdo e a presença do duplo é uma constante, o ponto alto está em algumas passagens, quando o texto está dentro de outro texto, transformando o enredo principal em secundário – para várias páginas depois retomar o andamento inicial.

Marian Leatherby está surda (uma forma de alienação do mundo real). Sua amiga milionária, Carmella, a presenteia com uma corneta auditiva. Desta forma, o silêncio, que era uma espécie de refúgio, passa a ser rompido nos momentos em que ela quer saber o que está ocorrendo ao seu redor. Evidentemente, isso não evita o exílio. Lamentando a falta dos charutos escuros, das pastilhas com essência de violeta, de não poder levar os gatos e a galinha, ela não entra em depressão. Ao contrário, entende que as perdas fazem parte do jogo e que não deve se lamentar pelo que não está mais sob controle.

Eu nunca estou sozinha, Galahad. Ou melhor, eu nunca sofro de solidão. Sofro muito com a ideia de que minha solidão possa ser tirada de mim por um monte de pessoas impiedosamente bem-intencionadas.

As nove hospedes da instituição comandada pelo dr. Gambit apresentam características peculiares, um leque que vai da timidez até a loucura paranoica. Ninguém é normal. O mesmo vale para as residências (castelo, chalés suíços, vagões ferroviários, bangalôs, prédios em forma de cogumelo, bota, múmia egípcia), que exploram o kitsch como uma manifestação artística. O fato que interessa é que o nonsense está presente em cada instante, em cada cena do romance. As imagens refletidas no espelho, o aparecimento de improváveis travestis, o assassinato sem explicação de uma das moradoras. A soma desses episódios significa muita diversão para o leitor – que encontra no estranhamento um humor delicado, mas que, a todo instante, pisa nos calos da política estatal. O autoritarismo, o cuidado com os idosos, as questões feministas, a precariedade dos trabalhadores, o descuido com as questões climáticas – todos esses temas, uns de forma explícita, outros de maneira sutil, estão contemplados na narrativa. 

Carmella, a personagem que surge em todos os momentos em que Marian precisa de ajuda, parodiando as narrativas triunfalistas, pode ter sido inspirada em Remedios Varo, a melhor amiga de Leonora Carrington. Suas intervenções providenciam comida, conforto, solidariedade. Além disso, garante que o pacto do afeto não seja rompido.   

Um dos pontos altos da narrativa se concentra em uma pintura que está na parede do refeitório. Marion imagina que a abadessa retratada está piscando. O sorriso de canto de lábio zomba de todos e de tudo. É como se ela estivesse dizendo coisas que são incompreensíveis aos indivíduos. Diante do quadro, Marion (instrumentada por Leonora Carrington) coloca em perspectiva a posição subversiva e excêntrica do feminino (para usar as palavras de Olga Tokarczuk, no posfácio). Não é por acaso que muitas mulheres foram rotuladas como bruxas ao longo da história. Ao masculino escapa essa piscadela, esse olhar que abraça o que está fora do entendimento cartesiano, que institui outra ordem na confusão cotidiana.  

 

Mary Leonora Carrington Moorhead nasceu em Clayton-le-Woods, Lancashire, Inglaterra, em 1917. Depois de uma temporada em Paris, mudou-se para o México em 1941. Foi namorada de Max Ernest, mas rompeu com os modernistas europeus por questões feministas – isso não a impediu de criar um conjunto artístico surrealista. Teve uma vida repleta de aventuras e desventuras. É a mais importante artista plástica mexicana depois de Frida Kahlo. Amiga de Remedios Varo e Elena Poniatowska. Faleceu em 2011 (pneumonia).       

 

The meal of Lord Candlestick. Óleo sobre tela, 1938. Coleção Particular. 


TRECHO ESCOLHIDO

“Você quer dizer que estamos entrando em outra era do gelo?” perguntei, sem qualquer alegria.

“Por que não? Aconteceu antes”, argumentou Carmella. “Devo dizer que sinto que é justiça poética se todos esses governos terríveis morrem congelados nos seus respectivos palácios governamentais ou parlamentos. Na verdade, eles estão sempre sentados na frente de microfones, então há uma boa chance de que todos congelem até a morte. Isso seria uma boa mudança, depois de empurrar as nações pobres para a matança total desde mil novecentos e catorze.

“É impossível entender como milhões e milhões de pessoas obedecem a uma coleção doentia de cavalheiros que se autodenominam ‘Governo’! A palavra, imagino, assusta as pessoas. É uma forma de hipnose planetária e muito insalubre.”

“Isso vem acontecendo há anos”, falei. “E apenas poucos ousaram desobedecer e fazer o que chamam de revoluções. E quando vencem suas revoluções, o que às vezes aconteceu, fizeram outros governos, às vezes mais cruéis e estúpidos do que os anteriores.”

“Os homens são muito difíceis de entender”, disse Carmella. “Vamos torcer para que todos congelem até a morte. Tenho certeza de que seria mais agradável e saudável para os seres humanos não se submeterem a qualquer autoridade. Eles teriam que pensar por si mesmos em vez de serem sempre informados quanto ao que devem fazer e pensar por anúncios, cinemas, policiais e parlamentos.” 


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