Páginas

segunda-feira, 24 de junho de 2024

AMÉRICA LATINA – LADO B

 


Existem livros de História (com maiúsculo) e livros de fofoca histórica. América Latina  Lado B, escrito pelo jornalista Ariel Palacios, pertence ao segundo tipo. E precisa ser lido como tal. Inclusive porque alguns fatos citados carecem de comprovação. Entre a verdade e a lenda, publique-se a lenda – mandam as regras do bom jornalismo.  

Ao reunir uma série de episódios pitorescos, muitas vezes grotescos, que aconteceram nos países de língua latina, Palacios confeccionou um catálogo de anedotas. Não há menção aos descalabros que aconteceram em Brasil, Estados Unidos, Canadá e Guiana Francesa. Uma das desculpas é que não são áreas de colonização espanhola. No entanto, esse critério duvidoso esbarra em algumas exceções: Suriname (colonizado por Holanda); Haiti (colonizado por França); Guiana (colonizado por Inglaterra). Outra complicação está na América Central. Vários países foram compactados em um único capítulo, como se não houvessem (ou fossem desconhecidos para o autor) eventos capazes de chamar a atenção dos leitores. O que, obviamente, não é verdade.

Palacios abre o livro citando o enterro solene de uma perna do general Antonio de Padua María Severino Lópes de Santa Anna y Pérez de Lébron, que foi presidente do México onze vezes entre 1833 e 1855. Simbolicamente, esse episódio sinaliza as muitas perdas causadas por conflitos estúpidos, ditaduras intermináveis e corrupção sem limites. É como se os corpos (dos indivíduos, dos Estados) fossem devorados em doses homeopáticas pelos deuses incas, maias e astecas – que decretaram vingança contra os invasores europeus e seus descendentes.

Há de tudo um pouco e para todos os gostos: golpes de Estado, cenas de tortura explicita, parlamentares que mudam de lado de acordo com interesses pessoais, desvio de dinheiro público, mandatos que foram derrubados em poucos dias, muito folclore e esposas ambiciosas. No liquidificador político que tritura constituições e opositores do governo de plantão, o horror é servido como se fosse uma iguaria. Pelo menos é isso o que propõe o livro de Ariel Palacios.

Evidentemente, nem tudo é terrível. O patético também se faz presente. Um desses momentos gloriosos está na história da delegação de Honduras que foi à Europa comprar uma estátua de um dos heróis da pátria. Gastaram a dotação nos cabarés de Paris e, com o pouco que sobrou, compraram um monumento aleatório (que estava abandonado em um depósito). Outra façanha foi protagonizada pelos militares argentinos tentando esconder o cadáver embalsamado de Eva Perón (conforme relata o excelente romance Santa Evita, do Tomás Eloy Martínez). O ex-presidente chileno Sebastián Piñera, que ficou conhecido por dizer asneiras (as Piñericosas), rivaliza com o atual mandatário argentino, Javier Milei, que costuma se aconselhar sobre os assuntos mais importantes do Estado com os clones de seu cachorro favorito.

Episódios como o Bananagate (Honduras, 1975), a Guerra do Futebol (Honduras e El Salvador, 1970), a Guerra do Pastel (México e França, 1838), a Guerra das Malvinas/Falklands (Argentina e Inglaterra, 1982) e a tentativa boliviana de invadir a Inglaterra, em 1870, contribuíram na elaboração do enredo da ópera bufa que é encenada diariamente no continente americano. 

Em governos que produziram milhares de presos, desaparecidos e mortos cabe destacar personagens como Nayib Bukele (El Salvador), Daniel Ortega (Nicarágua), Alberto Fujimori (Peru), Augusto Pinochet (Chile), Fulgêncio Batista (Cuba), Anastasio Somoza (Nicarágua), Manuel Noriega (Panamá) Rafael Trujillo (República Dominicana), François Duvelier (Haiti), Juan Domingos Perón (Argentina) e Hugo Chaves (Venezuela), entre outros. Nunca faltou na América Latrina generais golpistas financiados por empresas multinacionais ou pelo governo do norte do continente, sempre interessado em implantar a democracia entre os bárbaros.     

A América, se não é, parece ficção. América Latina – Lado B produz um gosto amargo na boca do leitor. É sempre desagradável ver a nossa verdadeira face.

                                                     xxxxxxxxxxxxxxxxxx

Post Scriptum: impressiona a quantidade de páginas que Ariel Palacios dedicou à Venezuela (40), relacionando fofocas sem a mínima importância para entender a questão política venezuelana. Parece ser um caso pessoal.   


terça-feira, 18 de junho de 2024

VELHOS

 


A velhice é território maldito. A consciência de que a vida está se extinguindo causa danos irreversíveis. Nem todos os atingidos por essa fatalidade reagem de maneira satisfatória. Os herdeiros são os primeiros que enlouquecem.

Muitas histórias podem ser contadas a partir da velhice. As mais banais costumam relacionar essa fase da vida com a experiência, a generosidade e a submissão. Simultaneamente, todos os seres humanos costumam fantasiar pais e mães, tias e tios, avós e avôs como pessoas sem máculas, sem defeitos, exemplos de bondade e carinho.  Na vida “real”, nem sempre é assim. A idade cronológica não costuma eliminar os defeitos, as idiossincrasias e os desvios de caráter. Algumas pessoas ficam velhos antes de ter adquirido a sabedoria, como disse um personagem de Rei Lear.

A idade está relacionada com centenas de doenças, complicações amorosas, diversos graus de violência, incontáveis acidentes, múltiplas decepções. Quando se alcança a melhor idade (que é a forma com que os cínicos definem a velhice), resta viver os últimos dias com a aposentaria ridícula, algumas histórias amargas, milhares de ressentimentos e a solidão – protagonizada pelo abandono parental.  

Foi com o propósito de mapear algumas situações relacionadas com a decomposição física e intelectual de pessoas com mais de 65 anos que Alê Motta escreveu os 30 contos curtos que compõem Velhos (São Paulo: Reformatório, 2020). Algumas dessas histórias são tristes porque insinuam que o isolamento afetivo tem parentesco com a morte. Em paralelo, há outras situações e outros sentimentos. A personagem que se arruma para ir ao shopping e conversar com qualquer desconhecido ilustra um movimento de resistência: Só volto para casa quando me sinto feliz.





Quem tem alguma afinidade com o tema provavelmente vai se lembrar de Memento Mori (São Paulo: Companhia das Letras, 2001), o estranho e engraçado romance de Muriel Sparks. Nesse livro, os personagens (quase todos na faixa dos 70, 80 anos) se recusam a ficar esperando pelo momento em que tudo termina. Preferem se comportar como adolescentes mal-educados. Na primeira oportunidade mentem, traem, roubam e tentam machucar uns aos outros. Se não estivessem tão perto da morte, poder-se-ia dizer que estão lutando pela vida. Desesperadamente.

Os personagens de Alê Motta não são tão radicais. Eles estão em outra escala. As inquietudes são mais sutis. Por isso, muitas das situações não apresentam novidades. A ideia é facilitar a compreensão e permitir que o leitor reconheça nessas histórias o caso de algum parente ou vizinho – ou, talvez, em mergulho crítico, projete o próprio futuro.

Diversos contos apresentam o humor como uma espécie de válvula de escape para o traumático. Isso não quer dizer que os personagens são edulcorados e que há a ambição de que tudo termine bem. Ao contrário, diversas narrativas revelam a desesperança, o passado opressor e o grotesco. A crueldade dos parentes (filhos, sobrinhos, genros e noras) aparece em cena com frequência. Sentimentos são moídos rapidamente por interesses pouco claros. Não há remédio que cure mágoas e dores.

O que está explicito em Velhos é relativamente simples e pode, salvaguardando as exceções, ser resumido no desfecho de um dos melhores contos do livro: não tenho mais paciência para esse papel de velhinho bom. Qualquer hora eu toco o terror nessa casa.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

O PRESIDENTE PORNÔ



 

A linguagem é uma segunda pele. Muitas vezes ela é conduzida ao dermatologista e recebe várias aplicações de toxina botulínica. Tudo fica esteticamente harmônico, sem rugas, sem flacidez, sem palavrões, sem ofensas, sem trocadilhos de quinta série. O cheiro dos esgotos costuma ser encoberto pelo aroma dos jardins floridos. Chamam isso de procedimento civilizatório. Há quem goste.

No canto oposto do ringue estão as piadas de mau gosto, as metáforas inadequadas, o humor típico das óperas bufas, a ironia, o sarcasmo e a celebração dos contornos da pornografia. Não há limites para essas expressões da linguagem. Desconhecem (ou omitem) a ética, a moral e o bom comportamento. O céu é o limite.  

Entre esses dois estágios da linguagem existe um conjunto de normas que regulamenta a escrita literária. Mas isso significa um impedimento para abordar questões que denunciam os interesses da classe média, as sacanagens políticas, as patifarias comerciais, as safadezas que ocorrem entre quatro paredes, o conluio entre as forças de repressão e o capitalismo opressor – principalmente quando as classes trabalhadoras são sodomizadas por aqueles que detém os meios produção.

De vez em quanto surgem exceções ao bom mocismo. O romance O Presidente Pornô (Companhia das Letras, 2023) aposta na transgressão. Usando uma linguagem sem papas na língua, o texto lambe as feridas da história recente do Brasil, digo Plazil – que, quando for grafado com “s”, identifica um remédio adequado para problemas no sistema digestivo. E que deveria se mostrar eficaz quando é necessário conviver com enjoos, vômitos e muitos dejetos corporais. Por diversas razões, inclusive farmacêuticas, não funciona.

Através da paródia, o livro inventa um país que não é a idolatrada salve salve. Quer dizer... É um lugar ficcional – e que, tanto lá como cá, celebra o velório da democracia. E que não se constrange em demolir alguns dos princípios básicos da vida comunitária. Seus habitantes usam e abusam da retórica anti-intelectual, do machismo, do racismo, da discriminação das minorias, da censura aos meios de comunicação, e não se preocupam com a metástase que está corroendo o tecido social. São adeptos do quanto pior, melhor.

Nesse sentido, a linguagem precisa ser utilizada como uma arma política. Há a necessidade de usar todas as letras do alfabeto para configurar o discurso da contestação, do escárnio, da denúncia do ridículo. E fugir do fútil, do insipido, da assepsia, da correção estética. Enfim, produzir uma escrita crua, sem eufemismos, sobre os avanços do autoritarismo e da extrema direita ao sul do Equador.

Recusar essa prática libertina e libertária pode resultar em colapso mental, em constipação, em úlceras, colites, câncer colorretal. Uma vida saudável precisa esvaziar o intestino e liberar o bolo fecal. E isso só se torna possível quando a linguagem não está conectada com a repressão dos esfíncteres.  

Concordando com a prática medicinal, O Presidente Pornô mostra um conjunto de cenas escabrosas, onde vicejam as ideologias mais estapafúrdias, o extremismo religioso, a mesquinharia econômica, a necessidade psicológica da submissão, o medievalismo e a consequente eleição do indivíduo mais despreparado para o exercício presidencial. São momentos similares aos bárbaros invadindo a Praça dos Três Poderes, em Brasília, ou a polícia matando de forma indiscriminada os jovens negros.

A visualização desses horrores, protagonizados pelos "pautriotas", não resolve as questões básicas, mas permite um nível de entendimento da realidade que o leitor não encontra nos romances água com açúcar ou nos dramas da pequena burguesia (que constantemente chora quando não encontra o pirulito com o seu sabor preferido).

O Presidente Pornô, uma fúria carnavalizante, desagrada os ingênuos e os moderados (esses que fazem cara feia à linguagem próxima daquela que é usada diariamente nas comunidades urbanas periféricas). É um livro para leitores que estão cientes de que a vida é tiro, porrada e bomba.  

 

terça-feira, 4 de junho de 2024

MACHADO DE ASSIS NOS TRENDING TOPICS

 


Uma digital influencer gringa andou internetando sobre o Bruxo do Cosme Velho. Vi o vídeo. Pareceu-me mais uma peça de propaganda da Amazon do que um elogio sincero. Mas essa opinião provavelmente se deve mais ao meu ceticismo com o capitalismo do que com o gosto literário de quem ficou deslumbrada com um livro que acho supervalorizado. Prefiro Dom Casmurro e Esaú e Jacó. De qualquer forma, se valer o que dizem por aí, a tradução estadunidense de Memórias Póstumas de Brás Cubas está vendendo mais do que panqueca com xarope de bordo nas manhãs do norte do mundo.

É sempre uma boa surpresa quando “eles” descobrem que existe literatura na parte de baixo do Equador. Nem digo “boa” literatura, porque, nesse caso, teria que discutir o conceito bom/mal e, para arrematar a querela, fazer uma lista dos livros que deveriam ser traduzidos nos países “civilizados”. Além de exaustiva, essa tarefa não é de minha competência.     

Cá entre nós, o deslumbramento com a prosa do Joaquim Maria não é, nem nunca foi, uma novidade. Harold Bloom e Susan Sontag, para ficarmos em dois exemplos exemplares, já haviam encharcado o papel (ou a tela do computador) com aplausos efusivos. A Helen Caldwell escreveu um ensaio inspirado comparando Otelo e Bento de Albuquerque Santiago. E o que dizer sobre os ensaios do John Gledson, que colocaram Machado em outro patamar no cânone ocidental?

Ah, os tempos são outros, mudaram as referências e a linguagem. Ninguém mais se importa com a crítica literária, o que vale – e consagra – são vídeos de um minuto (ou menos). Pois é. O tempora, o mores, diria algum intelectual pedante (aliás, essa expressão latina deve ter sido empregada pelo Machado, mas não tenho certeza e, no momento, estou com preguiça para pesquisar se usou ou deixou de usar – e, noves fora, isso não importa, segue o baile).     

Tá certo, tá tudo certo, Machado era maravilhoso. Quer dizer... Como todo escritor verborrágico, ele também escreveu algumas coisas, hum, digamos, não muito boas. O José Luiz Passos, certa vezes sugeriu a publicação de um volume chamado Os Piores Contos de Machado de Assis. O engraçado é que ninguém colocou essa ideia em prática, nem mesmo o seu autor. Falta coragem para provar que, na tradição literária, existe alguns santos do pau oco (ou com pés de barro).   

A verdade verdadeira é que, quando se está lustrando com a bunda os bancos dos colégios, nesse fim de mundo que chamam de Brasil, escrever trabalho escolar sobre a literatura de um sujeito que usava uma linguagem que, francamente, não apetece a ninguém, equivale a um suplício indescritível. Em inúmeras oportunidades ele escreveu uma coisa querendo dizer outra e, quando se descobre essa enrolação, o pobre coitado que está a se debruçar no texto conclui que não era isso ou aquilo, mas aquele outro. Uma complicação que chamam de ironia (será que a gringa percebeu esse detalhe?). Como se não fosse suficiente, são poucos os leitores que conseguem compreender o malabarismo que o sujeito praticou para sobreviver em uma sociedade aristocrática, elitista, branca e semianalfabeta na transição do século XIX para o XX. 

Dito isso, surge a pergunta indigesta: em que o vídeo da gringa ajudou a literatura brasileira? Vender livros do Machado (que estão no domínio público, ou seja, não pagam direitos autorais) só interessa às editoras e à Amazon. Alguém pode alegar que o vídeo pode ter contribuído para a criação de um novo público leitor lá e aqui. Invejo esse otimismo.

Ler Machado de Assis é uma experiência mágica. Mas, precisa ser feita por alguém que perceba o tipo de prestidigitação que está sendo feita por quem gosta de tirar coelho da cartola. Prefiro pensar que uma mudança no currículo escolar brasileiro, privilegiando a literatura contemporânea, pode ser mais proveitoso para ampliar o número de leitores. Faço parte da turma do Roland Barthes: o essencial é o prazer de ler.