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quarta-feira, 30 de abril de 2025

LIVROS: UM DEPOIMENTO

 

Foto: Dmitri Vaz Arruda

Tenho livros espalhados por quase todas as peças do apartamento. Poderia dizer que moro em uma biblioteca. Ou que a biblioteca mora em mim. Qualquer uma das duas versões está correta.

No apartamento anterior faltava espaço. Minha mãe, quando ia me visitar, olhava para aquele oceano de papel e suspirava fundo, sem acreditar no que estava vendo. Sempre repetia que tudo aquilo (os livros, o esforço acadêmico) era um desperdício de tempo e dinheiro. E fazia questão de pontuar: toda família têm um maluco; na nossa, é você. Não tenho certeza se isso era uma ofensa ou um elogio.

Passei parte significativa de minha adolescência na Biblioteca Pública de Lages (SC). O olhar guloso passeava por enciclopédias, romances, poesia, ensaios. Naquele lugar montei o meu primeiro escritório – e isso me permitiu uma vantagem: nunca precisei levar as tarefas da escola para casa. As bases da minha educação escolar e literária foram construídas lá. Simultaneamente, quase me transformei em sombra pálida do Autodidata, personagem de A Náusea (Jean-Paul Sartre), que pretendia ler, em ordem alfabética, todo o acervo de uma biblioteca.

Com o tempo fui construindo a minha biblioteca particular. No período das vacas magras comprava uns volumes baratos da Tecnoprint e das Edições de Ouro, adaptações dos clássicos, traduções ruins. Depois, comecei a gastar o dinheiro do lanche com a coleção Grandes Sucessos, da Abril Cultural. Comprava em banca de jornal, a cada quinze dias um título novo. Ainda tenho lembranças sentimentais de Horizonte Perdido (James Hilton), O Espião que Saiu do Frio (John Le Carré), O Salário do Medo (Georges Arnaud) e O Americano Tranquilo (Graham Greene), entre tantos outros livros que me afastaram do mundo real e me mostraram que existe um tipo muito especial de beleza e deslumbramento.

Um momento único no meu apego ao mundo literário ocorreu na metade dos anos 80. Embora fosse cliente de A Sua Livraria, comprava pouco, nunca tinha dinheiro para nada. Um dia, Dona Maria Josefina Rath de Oliveira me disse a frase mágica: você tem crédito na casa, leve o que quiser e pague quando puder. Não acreditei, parecia sonho ou alucinação.

Nunca fui um bom pagador. Mas, a partir daquele instante, comecei a acumular edições de melhor qualidade. Se não havia exemplar na loja, encomendava. Demorava uma eternidade para chegar. E quando estava com o livro na mão, lia com a mesma sede de quem, perdido no deserto, encontrava um copo d’água.

No meu imaginário, os livros são objetos de sedução. Adoro o cheiro de livro novo (bibliosmia). Fico excitado com o barulho do folhear das páginas. A textura do papel promete (e entrega!) carícias inimagináveis. Livros de capa dura são fetiches capazes de mover céus e terras. A embriaguez provocada por uma boa história (ou por uma reflexão inteligente) jamais resultou em ressaca.

A literatura nunca decepciona – jamais fui capaz de dizer o mesmo sobre o mundo dos seres de sangue, carne e osso.

Sem os livros, a minha vida perderia a razão de existir.

O meu projeto de paraíso só estará completo quando, além da biblioteca, tiver um jardim e um gato (Felis silvestres catus). Como ainda não tenho intenção de morar em uma casa, vou adiando, por enquanto, esses dois acréscimos à felicidade.


sexta-feira, 25 de abril de 2025

ESTE POST PRECISOU SER REMOVIDO

 


Alguns livros não devem ser lidos em lugares públicos. As fortes emoções que transmitem exigem acolhimento e reflexão. E isso raramente pode ser exercido quando os ruídos do mundo contribuem com o ensurdecimento em algumas questões básicas. O romance Esse post precisou ser removido (Editora Rua do Sabão, 2022. Tradução: Daniel Dago), escrito pela neerlandesa Hanna Bervoets, está nessa categoria.

Kayleigh é funcionária da Hexa, uma empresa terceirizada que monitora redes sociais. Nesse trabalho, o dia a dia está revestido de massacres visuais. Ela e os seus colegas precisam decidir quais vídeos devem ser excluídos e quais podem permanecer. Raros são os momentos em que precisam tomar alguma decisão sobre gatos fofinhos tocando piano. O usual é encontrar incontáveis exemplos da crueldade humana (mutilação, agressão física e psicológica, suicídio). Estar em contato com esse ambiente insalubre gera muitas complicações, inclusive porque as regras de remoção dos vídeos nem sempre são objetivas.

Ao final de cada turno de trabalho, o estresse, o esgotamento mental, a confusão e os desentendimentos atingem níveis perigosos. Para evitar que aconteça qualquer desgraça, muitos funcionários optam por usar algum tipo de anestésico. O usual é se reunirem em algum bar e se entorpecerem com álcool, maconha ou algum outro aditivo. Mas, não é só isso. Kayleigh percebe (ignorando o que causa esse comportamento) que vários colegas de trabalho estão trilhando caminhos políticos complicados. O terraplanismo, a negação do Holocausto e as doutrinas fascistas surgem nas conversas e acrescentam novos elementos no cardápio de incoerências. As imagens reais se mostram tão abusivas quando as imagens virtuais.  

Depois que Kayleigh abandonou a empresa, um advogado, Stitic, entra em contato solicitando que ela deponha em processo que está sendo preparado contra a Hexa. Muitos dos ex-colegas de trabalho estão com depressão, paranoia e outras doenças emocionais. A possibilidade de reencontrar essas pessoas faz com que ela recuse o pedido. Diante da insistência de Stitic, Kayleigh prefere enviar por escrito um longo monólogo, onde descreve o tempo em que trabalhou monitorando vídeos.

Nessa conversa em que somente uma voz se pronuncia (Stitic atua passivamente – ele é o elemento que desencadeia o exercício verborrágico), a descrição das atrocidades que Kayleigh viu diante das telas evidenciam que qualquer pessoa com um pouco de sensibilidade não poderia continuar por muito tempo naquele emprego tóxico.  

Para complicar ainda mais, Kayleigh menciona diversos episódios de sua tumultuada vida sexual com Sigrid, uma colega de trabalho. As duas mulheres são muito diferentes e discordam em dezenas de questões, inclusive nos assuntos íntimos. Desentendimentos, brigas, esgotamento nervoso, apatia sexual – a vida pessoal como reflexo da destruição afetiva.   

Aflitivo, Esse post precisou ser removido não é um livro de leitura fácil – e tem apenas 125 páginas. No entanto, revela, através da literatura, uma das faces mais complicadas do capitalismo predatório, sendo que poucos leitores possuem maturidade para tentar entender os acontecimentos narrados. A revolução tecnológica e as redes sociais introduziram na vida dos usuários uma série de elementos sem a mínima importância, mas que causam dependência psíquica. Enquanto alguns indivíduos são escravizados pelas imagens, outros se encarregam de produzir conteúdos capazes de satisfazer as mais estranhas fantasias. O horror retroalimenta os dois lados.       

 

Hanna Bervoets


segunda-feira, 21 de abril de 2025

FUMAÇA BRANCA, FUMAÇA PRETA

 


O Papa está morto, viva o Papa! Mas, antes dos rituais fúnebres, antes do enterro, antes que todos os cardeais com direito a voto no Conclave se desloquem para Roma, urge iniciar os conchavos para eleger o sucessor de Francisco I (Jorge Mario Bergoglio). A Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana é uma entidade política – sempre foi.  E somente os tolos negam isso.     

A morte do Papa significa o fim de uma era e, consequentemente, o inicio de outra. Será inovadora ou tradicional? Ninguém arrisca um palpite, embora a tendência seja a da rotatividade de pensamentos e ações. O pastor que gostava do Evangelho de Mateus  (especificamente 25:35-40) e pregava a empatia por setores menos favorecidos da sociedade (pobres, mulheres e homossexuais), deve ter, durante o seu pontificado, criado cisões entre os inúmeros setores eclesiásticos. É possível que surja uma reação em favor de princípios mais austeros. Se isso resultará em algo bom ou ruim, somente o tempo dirá.  

O que deve ser entendido, neste instante, é que os sucessores no trono de Pedro (comando da Igreja Católica) nem sempre contribuíram para mais congraçamento entre os povos, as religiões, a moral e a ética. A história do Papado está repleta de indivíduos que, por uma razão ou outra, se mostraram contrários às Escrituras. A ambição não possui limites e precisamos entender que aquele que ocupa o cargo é, sobretudo, humano.

Literariamente, dois livros (e suas versões cinematográficas), As Sandálias do Pescador (Morris West) e Conclave (Robert Harris) retratam a luta intestina pelo poder de forma pouco auspiciosa. São muitas as questões em jogo. A ideia globalista de eleger um representante do terceiro mundo entra em choque com o isolacionismo europeu (italiano, principalmente). A corrente reformista costuma se contrapor aos tradicionalistas (que são contra o ingresso das mulheres no serviço religioso e negam o direito ao casamento de pessoas do mesmo sexo). Os que acreditam na acumulação de riquezas se opõem aos de inspiração franciscana. Além disso, as questões pessoais (rivalidades, cobiças e fraquezas) costumam ser um ingrediente bastante forte na disputa pelo papado.

Recentemente, o atual presidente dos Estados Unidos manifestou interesse estratégico no Vaticano, tanto que indicou um crítico do Papa Francisco, Brian Burch (cofundador do grupo reacionário CatholicVote), como representante estadunidense. A manobra teve resposta imediata com a nomeação do Cardeal Robert McElroy como arcebispo de Washington – um defensor dos imigrantes e crítico do primeiro governo do republicano. Resta saber se essa rusga vai influenciar na escolha do novo Papa.  

De qualquer forma, convém observar que vice-presidente de Estados Unidos, James David Vance, que é católico, encontrou-se com o Papa um dia antes de seu falecimento. Francisco manifestou, mais uma vez, em alto e bom som, o descontentamento com a política de deportação massiva de imigrantes e pediu respeito pela dignidade daqueles que deixaram seus locais de origem para construir uma vida melhor em terras estadunidenses. Também, em recado muito específico, o Papa Francisco, na mensagem de Páscoa, conhecida como a benção Urbi et Orbi, pediu paz para as áreas de conflito (Gaza e Ucrânia, especificamente), locais onde as potências políticas costumam desprezar as questões humanitárias.

É difícil saber que rumos a Igreja Católica vai seguir a partir de agora. Quando a fumaça branca surgir na chaminé da Capela Sistina o mundo terá que enfrentar o futuro. Ao conservador Bento XVI (Joseph Aloisius Ratzinger) sucedeu o progressista (com reservas) Francisco I (Jorge Mario Bergoglio). Ninguém esperava por essa surpresa. Talvez tenhamos outra. Se Deus quiser.


Cena do filme Conclave (Dir. Edward Berger, 2024)


sexta-feira, 18 de abril de 2025

A FÁBRICA

 


A fábrica (e suas instalações, que se parecem com um imenso shopping center) é uma prisão sem grades – ninguém está impedido de ir e vir, mas algum tipo de atração impede que os funcionários se distanciem. Oferece emprego para o resto da vida, embora não seja possível saber o que é produzido pelo complexo industrial.

Situada em uma região imensa, um rio atravessa as instalações e, logo depois, desemboca no mar. Na região próxima da ponte existem muitas aves e incontáveis roedores (nutrias, também conhecidos como ratões-do-banhado) – são parte da paisagem. Ninguém fica perturbado com a presença desses animais, ninguém adota alguma ação para afastá-los das proximidades da fábrica.

No entendimento de todos os funcionários a rotina garante o bom funcionamento da empresa. Ninguém se queixa do cansaço, ninguém fica estressado. É o contrário, a leveza predomina. Todos parecem estar anestesiados, sem qualquer vontade de romper com a inércia. O único que mostra alguma inquietação com essa tranquilidade é o biólogo Yoshio Furufue (que deveria implantar um sistema paisagístico nas sacadas, mas que, com o passar do tempo, somente se ocupa em catalogar musgos e coordenar visitas estudantis à fábrica). Um idoso e seu neto (Hikaru Samukawa) despertaram nele a sensação de que algo não estava bem encaixado na situação. Mas, essa impressão vai se dissolvendo na medida em que o tempo vai passando. Ficou empregado da fábrica por quinze anos.      

Os irmãos Ushiyama trabalham em diferentes setores ligados à produção e destruição gráfica. Ele faz revisão e correções em documentos; ela trabalha com uma trituradora de documentos. Eles nunca conversam dentro da fábrica. Parecem desconhecer um ao outro (mesmo na ocasião em que Yoshiko percebe que o irmão também está trabalhando na fábrica). É um dos vários momentos de estranhamento. No entanto, os dois se encontram em casa ou em um restaurante. A namorada do irmão, funcionária de uma agência de colocação de pessoal terceirizado, aparece rapidamente na narrativa e não desperta a simpatia de Yoshiko: o ódio que até agora eu evitara sentir por ela de súbito aflorou. Esse é um dos instantes raros em que os sentimentos adquirem algum relevo.

O romance A fábrica, de Hiroko Oyamada (Editora Todavia, 2025. Tradução de Jefferson José Teixeira), está estruturado no realismo e, quase imperceptivelmente, desliza para o fantástico. Para que esse estratagema funcione, nada se mostra fora da ordem. Um dos mecanismos utilizados para distrair a atenção do leitor está na forma narrativa. O narrador se divide a cada capítulo: entre a primeira e a terceira pessoa há um ajuste para que cada um dos três protagonistas ofereça depoimentos pessoais sobre o trabalho. São os eventos cotidianos e suas variações que ocupam a parte central do romance. Raras são as cenas que relatam algo fora do ambiente de trabalho. É como se os personagens não conseguissem romper as paredes que separam a fábrica do mundo exterior.

No momento em que o trivial parece predominar, o fantástico aparece de uma maneira muito particular e fornece sentido para uma narrativa que tem traços kafkanianos: seja pelo insólito, seja pelo desfecho.


Hiroko Oyamada


segunda-feira, 14 de abril de 2025

MARIO VARGAS LLOSA

 


São seis os ganhadores latino-americanos do Prêmio Nobel de Literatura: Gabriela Mistral (pseudônimo de Lucila de Maria del Perpétuo Socorro Godoy Alcayaga), 1957; Miguel Ángel Astúrias Rosales, 1967; Pablo Neruda (pseudônimo de Ricardo Eliécer Neftali Reyes Basoalto), 1971; Gabriel José Garcia Márquez, 1982; Octavio Paz Lozano, 1990; Jorge Mario Pedro Vargas Llosa, 2010.

O último nome da lista dos agraciados com a honraria (e o dinheiro) faleceu em Lima, Peru, no dia 13 de abril de 2025. Tinha 89 anos. O axioma machadiano, Está morto. Podemos elogiá-lo à vontade serve perfeitamente para entender as múltiplas manifestações de pesar.

As redes sociais estão vertendo lágrimas. É como se um rio Amazonas de dor estivesse atravessando a vida de leitores, editores, familiares e admiradores. Um desses fãs (espanhol, se não estou enganado), pediu para que não se misture vida e obra, política e literatura. É difícil fazer essa separação. Inclusive porque o escritor é a mesma pessoa que se manifestou ideologicamente na manutenção do colonialismo capitalista de extrema direita nos países de América Latina. De qualquer forma, independente de absolver ou condenar o escritor, assim como Ezra Pound (1885-1972), Pierre Drieu La Rochelle (1893-1945) e Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), o nome de Vargas Llosa sempre será lembrado pelo caminho que preferiu trilhar nas questões econômicas e políticas. A história não perdoa certas escolhas.     

Alguns dos livros de Vargas Llosa são maravilhosos: Tia Julia e o escrevinhador (uma das narrativas que mais me divertiram em toda a minha vida de leitor), A festa do bode (fantástica denúncia sobre a ditadura na República Dominicana), Pantaleão e as visitadoras (sátira brilhante sobre o militarismo e o machismo latino), Conversas no Catedral (um painel da vida burguesa em Peru nos anos 50/60), A cidade e os cachorros (alguns adolescentes em uma academia militar), A guerra do fim do mundo (uma recriação da Guerra de Canudos), Casa verde (o submundo da prostituição analisado pelo microscópio literário). Soma-se a esses romances um ensaio, A orgia perpétua, onde disseca a obra de Gustave Flaubert (1821-1880), apontando a força transformadora da ficção.

O talento literário não impediu certas aventuras. Há uma história muito mal explicada com Gabriel Garcia Márquez, onde os contendores (que antes eram inseparáveis) foram às vias de fato. Alguns boatos citam um episódio extraconjugal, mas ninguém confirma. De qualquer forma, a vida amorosa de Vargas Llosa parece ter sido intensa, com direito a eventos rocambolescos, que resultaram em ameaças de maridos enfurecidos, entre outras peripécias.

Em 1990, Vargas Llosa não conseguiu controlar a vaidade e concorreu à presidência de Peru. Embora tenha vencido no primeiro turno, perdeu na segunda fase eleitoral para Alberto Kenya Fujimori (1938-2024). Essa experiencia (da qual se arrependeu) serviu de base para o romance Cinco esquinas, onde relata a corrupção governamental e a violência produzido pelo Sendero Luminoso, grupo guerrilheiro peruano de inspiração maoísta.

Desgostoso, mudou-se para a Europa em 1993, depois de obter a cidadania espanhola. Em 2011, foi nomeado por Juan Carlos I, rei de Espanha, 1º Marquês de Vargas Llosa.

Quando surgiram notícias, em 2021, do esquema fraudulento Pandora Papers, descobriu-se que Vargas Llosa estava entre aqueles que visavam, entre outras coisas, sonegar impostos. Como compete nessas situações, declarou que nunca tentou fraudar o fisco. Mas, diante das acusações, confirmou a existência de uma offshore.

Vargas Llosa foi o último dinossauro de uma geração talentosa. O titulo de seu último livro é premonitório: Dedico a você meu silêncio.  


Vargas Llosa e Garcia Márquez

P.S: Alguns dos livros de Vargas Llosa foram adaptados para o cinema (Pantaleão e as visitadoras, Tia Julia e o escrivinhador, A cidade e os cachorros, A festa do Bode, etc.). São filmes ruins. 


terça-feira, 8 de abril de 2025

TEORIA DO MEDALHÃO

 


Um dos contos de Machado de Assis, Teoria do Medalhão, originalmente publicado em 1881, no jornal Gazeta de Notícias, e que integra o livro Papéis Avulsos, de 1882, pode ser lido como um manual de instruções para o arrivismo. 

Um pai, ao comemorar o aniversário de maioridade do filho, Janjão, o instrui sobre como se comportar nos negócios e na vida social. Diz o pai: o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. No entanto, os conselhos paternos vão exatamente na direção contrária. Solicita a contenção dos arroubos da juventude, sugere ater-se às superficialidades da moda, e, na área do entretenimento, salutar é praticar o brilhar, o voltarete, o dominó e o whist. Estar perto de personalidades importantes, além de frequentar ambientes refinados, são estratégias valiosas. Mas, sem se comprometer, sem causar alvoroço, sem chamar a atenção para os extremismos. Como as trivialidades são o tempero das conversas sociais no trabalho, nas festas ou com os amigos: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer cousa. Nesses encontros, uma questão fundamental é o cuidado no uso do vocabulário: há que ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim... Mas sempre atento a uma singularidade: o adjetivo é alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. Deve-se afastar dos substantivos, das coisas concretas, dos horrores da vida.       

Pedagogicamente, o pai destaca: Melhor do que tudo isso, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustradas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Por isso convém, nas mais diversas circunstâncias, para compor uma camada de verniz intelectual, citar alguns brocados latinos ou aludir a alguma figura mitológica. Com esse proceder estabelece-se a arte difícil de pensar o pensado (uma forma de fugir dos assuntos complicados, que exigem uma opinião comprometedora).  

Quando o pai faz a apologia da publicidade, a arte de conquistar a simpatia e o carinho das pessoas, instrui que é de bom-tom presentear com pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, cousas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Ou seja, está propondo que a escalada do sucesso passa por ações inócuas, porém emocionalmente eficazes. Em casos mais expressivos, deve-se convidar os amigos e camaradas para algum jantar. Esse tipo de benevolência chama a atenção: Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome antes os olhos do mundo. Em alguns momentos, cabe fazer chegar aos jornais alguma nota sobre os últimos acontecimentos (obviamente, redigida de próprio punho ou sob incumbência de algum amigo ou parente).   

São lições da mais alta sabedoria para sobreviver em um mundo competitivo e pouco atento às artimanhas de quem nada acrescenta, mas que aparenta ser um espécime da mais fina estampa. Aos que perseveram nessa tarefa longa e muitas vezes estafante, que é obter a distinção social, arremata, dizendo ao filho: (...) felizes os que chegam a entrar na terra prometida! Os que lá não penetram, engole-os a obscuridade. Mas os que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas.   

No momento em que a política for uma possibilidade, há que se tomar certo cuidado: Toda questão é não infringir as regras. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano. Os partidos são molduras e nada mais que isso. Por isso, na escolha dos discursos, tens à escolha: – ou os negócios miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. (...) Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforges da memória. 

Uma última lição: Somente não deves empregar a ironia, esse movimento de canto de boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios.

Ao se despedir do filho, o pai arremata a conversa de forma lapidar: Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de Machiavelli.

Na arte de iludir, nenhuma tática pode ser desprezada, todos os artifícios são válidos. Em diversos momentos, o pai salienta que a regra de ouro da notoriedade social está em impedir que as pessoas (inclusive o filho) possam pensar por conta própria. As banalidades, os clichês, os pequenos subornos – com essas armas institui-se o diversionismo, momento ideal para que, através da chalaça, tudo se mostre divertido, apenas uma grande brincadeira. Sic transit gloria mundi.  


Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908).

P.S: A ironia, esse chicote que estala no lombo dos idiotas, é uma das marcas registradas do Machado de Assis. Quem não entender essa chave de leitura, deve dispensar a Teoria do Medalhão e, quiçá, se dedicar aos livros de autoajuda. 

quinta-feira, 3 de abril de 2025

PERDAS

 


No poema One art, Elizabeth Bishop (1911-1979) escreveu que The art of losing isn’t hard to master / (...) / though it may look like (Write it!) like disaster, versos que podem ser traduzidos informalmente como A arte de perder não é um mistério / (...) / por mais que pareça (escreva isso!) um desastre.

Lembrei-me desses dois versos do poema alguns anos atrás, quando minha mãe (que faleceu em 2021), precisava fazer prova de vida no INSS. Ou seja, tinha que convencer o governo de que não estava morta. Ocorre que, naquele momento, o seu estado de saúde era precário e o bom senso recomendava procurar por alternativas para cumprir com a formalidade burocrática.

Liguei para o número telefônico 135 – conforme me foi recomendado na instituição bancária onde ela recebia o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Depois da inevitável espera, a máquina que me atendeu (é sempre uma máquina!) solicitou o número do Cadastro de Pessoa Física (CPF) da requerente e informou que deveria selecionar o tipo de atendimento desejado (números entre 1 e 9). Não tinha em mãos essa informação. Desliguei e fui procurar pela Carteira de Identidade (também conhecida como Registro Geral  RG) da mãe. Lá consta o número do CPF.

Não encontrei. Revirei pastas e caixas de sapato onde guardo as quinquilharias familiares. Não sei o que a cédula identitária estaria fazendo naqueles lugares, mas revisitei vários álbuns de fotografias. Isso provocou muitas lembranças, assombros que costumam me incomodar. Fingi que não era comigo, o que queria era encontrar o documento. Esvaziei duas gavetas – foi bom fazer isso, coloquei em um saco de lixo centenas de comprovantes de pagamentos bancários e alguns panfletos comerciais; papéis inúteis que estavam fazendo volume e tinham perdido a utilidade.

Cansado, sentei no sofá do escritório e fiquei olhando para os livros emparedados nas estantes. Quiçá poderiam fornecer alguma pista do documento desaparecido. Esforço inútil. Nenhuma possibilidade de encontrar o que estava procurando. E agora? Essa pergunta, misturando perplexidade e desespero, parecia não ter resposta.

Perder livros, documentos, chaves, cartão de crédito, dinheiro – tenho um dom natural para esse tipo de coisa. Se fosse contar quantas vezes isso aconteceu, escreveria um livro. Evidentemente, depois de algum tempo e grandes incômodos, me recuperei de quase todos os danos. Posso até dizer que o estrago foi mínimo. O que sempre me incomodou foi o correr atrás do prejuízo, o medo de estar diante de um beco sem saída.

Edgar Allan Poe (1809-1849) escreveu um conto mágico, A Carta Roubada. Várias pessoas procurando por algo que está diante dos olhos. É um caso clássico de cegueira coletiva, ninguém consegue enxergar a obviedade. De forma similar, foi o que aconteceu comigo. Em função de outras demandas, precisei separar uma série de notas fiscais relacionadas com os gastos da mãe (remédios, fraldas, compras de supermercado, recibos de aluguel, água e luz). Coloquei tudo dentro de um envelope. Junto com a papelada, a Carteira de Identidade.

Esse envelope estava o tempo todo na minha frente, em uma das estantes, a dos livros de História. Eu não fui capaz de o ver. Tampouco lembrei que havia incluído a CI naquele grupo de documentos. 

Ao alivio de encontrar a Carteira de Identidade, seguiram-se as inevitáveis confusões ao tentar agendar a prova de vida. Entretanto, isso é outra história.



Ilustração para o conto A carta roubada, de Edgar Allan Poe,
e atribuída a Frederic Theodore Lix (1830-1897)
ou Jean-Édouard Dargent (1824-1899).