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quinta-feira, 3 de abril de 2025

PERDAS

 


No poema One art, Elizabeth Bishop (1911-1979) escreveu que The art of losing isn’t hard to master / (...) / though it may look like (Write it!) like disaster, versos que podem ser traduzidos informalmente como A arte de perder não é um mistério / (...) / por mais que pareça (escreva isso!) um desastre.

Lembrei-me desses dois versos do poema alguns anos atrás, quando minha mãe (que faleceu em 2021), precisava fazer prova de vida no INSS. Ou seja, tinha que convencer o governo de que não estava morta. Ocorre que, naquele momento, o seu estado de saúde era precário e o bom senso recomendava procurar por alternativas para cumprir com a formalidade burocrática.

Liguei para o número telefônico 135 – conforme me foi recomendado na instituição bancária onde ela recebia o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Depois da inevitável espera, a máquina que me atendeu (é sempre uma máquina!) solicitou o número do Cadastro de Pessoa Física (CPF) da requerente e informou que deveria selecionar o tipo de atendimento desejado (números entre 1 e 9). Não tinha em mãos essa informação. Desliguei e fui procurar pela Carteira de Identidade (também conhecida como Registro Geral  RG) da mãe. Lá consta o número do CPF.

Não encontrei. Revirei pastas e caixas de sapato onde guardo as quinquilharias familiares. Não sei o que a cédula identitária estaria fazendo naqueles lugares, mas revisitei vários álbuns de fotografias. Isso provocou muitas lembranças, assombros que costumam me incomodar. Fingi que não era comigo, o que queria era encontrar o documento. Esvaziei duas gavetas – foi bom fazer isso, coloquei em um saco de lixo centenas de comprovantes de pagamentos bancários e alguns panfletos comerciais; papéis inúteis que estavam fazendo volume e tinham perdido a utilidade.

Cansado, sentei no sofá do escritório e fiquei olhando para os livros emparedados nas estantes. Quiçá poderiam fornecer alguma pista do documento desaparecido. Esforço inútil. Nenhuma possibilidade de encontrar o que estava procurando. E agora? Essa pergunta, misturando perplexidade e desespero, parecia não ter resposta.

Perder livros, documentos, chaves, cartão de crédito, dinheiro – tenho um dom natural para esse tipo de coisa. Se fosse contar quantas vezes isso aconteceu, escreveria um livro. Evidentemente, depois de algum tempo e grandes incômodos, me recuperei de quase todos os danos. Posso até dizer que o estrago foi mínimo. O que sempre me incomodou foi o correr atrás do prejuízo, o medo de estar diante de um beco sem saída.

Edgar Allan Poe (1809-1849) escreveu um conto mágico, A Carta Roubada. Várias pessoas procurando por algo que está diante dos olhos. É um caso clássico de cegueira coletiva, ninguém consegue enxergar a obviedade. De forma similar, foi o que aconteceu comigo. Em função de outras demandas, precisei separar uma série de notas fiscais relacionadas com os gastos da mãe (remédios, fraldas, compras de supermercado, recibos de aluguel, água e luz). Coloquei tudo dentro de um envelope. Junto com a papelada, a Carteira de Identidade.

Esse envelope estava o tempo todo na minha frente, em uma das estantes, a dos livros de História. Eu não fui capaz de o ver. Tampouco lembrei que havia incluído a CI naquele grupo de documentos. 

Ao alivio de encontrar a Carteira de Identidade, seguiram-se as inevitáveis confusões ao tentar agendar a prova de vida. Entretanto, isso é outra história.



Ilustração para o conto A carta roubada, de Edgar Allan Poe,
e atribuída a Frederic Theodore Lix (1830-1897)
ou Jean-Édouard Dargent (1824-1899).