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Foto: Dmitri Vaz Arruda |
Tenho livros espalhados por quase todas as peças do apartamento. Poderia dizer que moro em uma biblioteca. Ou que a biblioteca mora em mim. Qualquer uma das duas versões está correta.
No apartamento anterior faltava espaço. Minha mãe, quando ia me visitar, olhava para aquele oceano de papel e suspirava fundo, sem acreditar no que estava vendo. Sempre repetia que tudo aquilo (os livros, o esforço acadêmico) era um desperdício de tempo e dinheiro. E fazia questão de pontuar: toda família têm um maluco; na nossa, é você. Não tenho certeza se isso era uma ofensa ou um elogio.
Passei parte significativa de minha adolescência na Biblioteca Pública de Lages (SC). O olhar guloso passeava por enciclopédias, romances, poesia, ensaios. Naquele lugar montei o meu primeiro escritório – e isso me permitiu uma vantagem: nunca precisei levar as tarefas da escola para casa. As bases da minha educação escolar e literária foram construídas lá. Simultaneamente, quase me transformei em sombra pálida do Autodidata, personagem de A Náusea (Jean-Paul Sartre), que pretendia ler, em ordem alfabética, todo o acervo de uma biblioteca.
Com o tempo fui construindo a minha biblioteca particular. No período das vacas magras comprava uns volumes baratos da Tecnoprint e das Edições de Ouro, adaptações dos clássicos, traduções ruins. Depois, comecei a gastar o dinheiro do lanche com a coleção Grandes Sucessos, da Abril Cultural. Comprava em banca de jornal, a cada quinze dias um título novo. Ainda tenho lembranças sentimentais de Horizonte Perdido (James Hilton), O Espião que Saiu do Frio (John Le Carré), O Salário do Medo (Georges Arnaud) e O Americano Tranquilo (Graham Greene), entre tantos outros livros que me afastaram do mundo real e me mostraram que existe um tipo muito especial de beleza e deslumbramento.
Um momento único no meu apego ao mundo literário ocorreu na metade dos anos 80. Embora fosse cliente de A Sua Livraria, comprava pouco, nunca tinha dinheiro para nada. Um dia, Dona Maria Josefina Rath de Oliveira me disse a frase mágica: você tem crédito na casa, leve o que quiser e pague quando puder. Não acreditei, parecia sonho ou alucinação.
Nunca fui um bom pagador. Mas, a partir daquele instante, comecei a acumular edições de melhor qualidade. Se não havia exemplar na loja, encomendava. Demorava uma eternidade para chegar. E quando estava com o livro na mão, lia com a mesma sede de quem, perdido no deserto, encontrava um copo d’água.
No meu imaginário, os livros são objetos de sedução. Adoro o cheiro de livro novo (bibliosmia). Fico excitado com o barulho do folhear das páginas. A textura do papel promete (e entrega!) carícias inimagináveis. Livros de capa dura são fetiches capazes de mover céus e terras. A embriaguez provocada por uma boa história (ou por uma reflexão inteligente) jamais resultou em ressaca.
A literatura nunca decepciona – jamais fui capaz de dizer o mesmo sobre o mundo dos seres de sangue, carne e osso.
Sem os livros, a minha vida perderia a razão de existir.
O meu projeto de paraíso só estará completo
quando, além da biblioteca, tiver um jardim e um gato (Felis
silvestres catus). Como ainda não tenho intenção de morar em uma casa, vou
adiando, por enquanto, esses dois acréscimos à felicidade.