Páginas

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

WALTER BENJAMIN (o anjo da melancolia)




Walter Benedix Schöenfliess Benjamim nasceu no dia 15 de julho de 1891 e morreu na noite entre os dias 26 e 27 de setembro de 1940. Transpondo as fronteiras que existem entre a filosofia, a sociologia e a literatura, ele formulou uma série de críticas agudas contra o capitalismo.

Tímido, infeliz no amor, intelectual de esquerda, incapaz de gerenciar economicamente a existência, sem sucesso na carreira acadêmica, filósofo, cercado de amigos às vezes mais complicados do que ele (Bertolt Brecht, Gershon Scholem, Theodor Wiesengrund Adorno, Louis Aragon, André Breton,...), colaborador do Institur fűr Sozialforschunf (Instituto de Pesquisas Sociais, também conhecido como “Escola de Frankfurt”) – são muitas as tentativas de defini-lo. Nenhuma delas parece ser suficiente.   

Jeanne Marie Gagnebin diz que Benjamin foi um fracasso exemplar. Susan Sontag acreditava que ele viveu sob o signo de Saturno. Hannah Arendt o chamou de pescador de pérolas. Theodor Adorno escreveu um artigo onde o coloca distante de todas as correntes.


O que faz desse judeu errante, nascido em Berlim, o alvo de tantas atenções? Filho de um abastado comerciante de artes (antiguidades), Benjamin estudou filosofia em Freiburg-im-Breisgau e passou parte da vida acreditando que o seu destino era ingressar em uma universidade para ensinar estética ou crítica literária. Para que isso se tornasse mais do que uma possibilidade, defendeu em 1919, em Berna, a sua tese de doutorado, O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. Infelizmente, o seu projeto de ingressar no mundo acadêmico sofreu um grande revés em 1925. Depois de ter passado dois anos redigindo o texto de livre docência na Universidade de Frankfurt (A Origem do Drama Barroco Alemão), ouviu do seu orientador um pedido no mínimo desagradável. O professor e seus colegas simplesmente não entenderam o trabalho e pediram para que ele retirasse a candidatura, pois não queriam reprová-lo.

Nesse ínterim, Benjamin conheceu a mulher de sua vida, a atriz e revolucionária russa Asja Lacis. Foi na ilha de Capri, em 1924. Mesmo sendo casado, Benjamim se viu envolvido nas tramas do amor. No início, Asja, que também era casada, não corresponde. Depois,... Parte desse namoro está contado em Diário de Moscou.

Ninguém escapa impunemente desse tipo de relacionamento. Ficaram muitas mágoas. Para vários dos amigos de Benjamin, notadamente Gershon Scholem, Asja Lacis contribuiu para que ele ficasse contaminado pelo marxismo.

No campo das reclamações, não era só Scholem que tinha queixas. Bertolt Brecht via na amizade entre Benjamin e Scholem uma complicação e que misturava marxismo com misticismo, metafísica e judaísmo (Scholem foi um dos maiores especialistas na Cabala, o livro básico da religião judaica). Além disso, se irritava com a maneira lenta com que Benjamim jogava xadrez e, não menos pior, no seu diário deixou escritas diversas passagens corrosivas contra o Instituto de Pesquisas Sociais.

Theodor Wiesengrund Adorno, às vezes com alguma inveja, às vezes com um pouco de razão, e sempre fiel ao seu papel de crítico marxista (ou seja, de fiscalizador ideológico da cultura), considerava que Brecht e Scholem eram os responsáveis pela falta de dialética e pelo materialismo um pouco cru de determinados ensaios benjaminianos. Provavelmente terá sido também por isso que a cobrança muitas vezes foi excessiva. Não é possível ignorar a célebre história em que Adorno – na categoria de um dos diretores do Instituto de Pesquisas Sociais – aconselhou Benjamim a escrever uma segunda versão de A Paris do Segundo Império na Obra de Charles Baudelaire, sob a alegação de que o ensaio não estava suficientemente dialético, visto que, na ótica de Adorno, não efetua uma análise da totalidade social! Precisando pagar as contas, Benjamim desistiu de reclamar e escreveu um novo texto.

Com o fracasso do seu projeto intelectual em Frankfurt, com a bancarrota de seu pai (que durante muito tempo financiou seus estudos), com a separação da esposa (que ficou com todos os bens do casal), Benjamim se viu em uma situação inusitada: precisou “trabalhar” (e o que é pior, no sentido mais abjeto do termo). Colaborando com alguns jornais e revistas, escrevendo para o rádio, e, esporadicamente, morando de favor com alguns amigos (com Brecht, na Dinamarca, em 1934 e 1938; várias vezes com a ex-esposa em San Remo, Itália; ou então com diversos amigos – e em condições precárias – na ilha de Ibiza, Espanha), foi levando a vida como dava. Adorno, que talvez tenha sido o seu único discípulo (que, ao mesmo tempo, era o seu chefe!), o ajudou algumas vezes – nunca o suficiente.

Morando em Paris desde março de 1933, Benjamim cumpre um exílio voluntário. Com a ascensão do Nacional Socialismo não havia mais ambiente para um intelectual judeu na Alemanha. Nesse período os problemas financeiros se multiplicaram. Se não fosse a caridade de alguns amigos, passaria fome. Além disso, para ampliar os seus problemas, com o início da guerra, foi internado, entre setembro de novembro de 1939, em Nevers, com outros refugiados alemães, em um “campo de trabalhadores voluntários”. Como estratégia de sobrevivência, tenta organizar com os prisioneiros uma revista literária – quer, de fato, mostrar para as autoridades francesas o seu nível intelectual. Outro experimento foi um curso de filosofia que tentou ministrar – cada participante precisava pagar três gauloises (cigarros franceses). No final de novembro, graças a intervenção de vários amigos, particularmente Adrianne Monnier e Jules Romain, é libertado.

De volta à Paris, escreve um dos seus mais importantes textos, as teses Sobre o Conceito de História. Desafortunadamente, o mundo está em convulsão e diante da invasão da França pelo exército nazista em maio de 1940, Benjamim, às raias do desespero, tenta fugir para Estados Unidos. A rota de fuga mais sensata é atravessar os Pirineus, a Catalunha e, em Lisboa, conseguir um voo para atravessar o Atlântico. De maneira pouco lógica, vai para Marseille – ali, por acaso, encontra Arthur Koestler, que divide com ele alguns tabletes de morfina. Depois, na companhia de várias pessoas em situação similar a sua, inicia a viagem à Espanha. Na cidade fronteiriça de Port-Bou, as autoridades alfandegárias do governo de Vichy negam passagem ao grupo. Informado que, no dia seguinte, seria recambiado à França – em outras palavras, para um campo de concentração – Benjamim, durante a noite, ingere os tabletes de morfina. Pela manhã, 27 de setembro de 1940, o grupo de viajantes obtém permissão para continuar a viagem.

Contemporaneamente, seus críticos e admiradores destacam como característica marcante em Benjamim o modo precário como ele escolheu viver. A solidão sempre o acompanhou. Quase todas as suas fotografias revelam um rosto cansado, o olhar sempre distante, a melancolia como projeto estético. Há uma espécie de revolta (e, simultaneamente, de culpa) em Benjamim, talvez produzida pelo romantismo que o envolvia, talvez porque alguns analistas fazem questão de identificar a sua vida com um conjunto de desastres (se valer o ponto de vista capitalista). A desilusão amorosa, as dificuldades financeiras, a conjuntura política do período em que viveu, o irracionalismo cultural – esses elementos contribuíram para que o seu temperamento fosse triste e repleto de reflexões sobre o sentido das coisas e da vida.    

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

NOVENA PARA PECAR EM PAZ





Novena para Pecar em Paz: nove contos sobre mulheres. Mães, filhas, esposas, amantes, meninas. O corpo como estratégia de resistência, de resiliência. A violência doméstica, o cerceamento social, a opressão política, a repressão sexual, a negação das questões de gênero.  Mordaças.  

Novena para Pecar em Paz pronuncia – em voz alta e clara – que não se deve fornecer poder ao opressor. Prenuncia que, apesar da dor, dos lamentos e das lágrimas, não há porque aceitar os ideais românticos (príncipe encantado, bela adormecida, finais felizes). Existem outras formas de superar os obstáculos.


Novena para Pecar em Paz coloca Brasília no centro do mapa da violência (imaginária, simbólica, física). O mundo social reproduzindo o mundo político. As arbitrariedades se multiplicando. A crueldade caminha ao lado dos inocentes, esperando pelo momento propício para iniciar os rituais de destruição.


Novena para Pecar em Paz denuncia o abuso masculino e a fragilidade feminina. Também mostra as fraquezas dos homens e a energia das mulheres. Destino? Ninguém sabe de onde surge a força de quem resiste aos horrores que acompanham a injustiça e o medo. Um dia, qualquer dia, o desespero se pronuncia de forma inequívoca. Acordar é que é o pesadelo.

Cinthia Kriemler
Novena para Pecar em Paz encena um jogo que engana, que não é (nunca foi) bacana. The art of losing, um bom título para exercício dramático. Ou então, a explicação derradeira para a estranha fruta. O amor em descompasso, rebelde aos ditames da norma, fruição do corpo em contato com outro corpo. E esse vazio que nunca deixará de existir.   

Novena para Pecar em Paz conta das dificuldades de mãe solteira, criar duas filhas, evitar o mal. Quem quer namorado? Mamãe? O tempo passa, as meninas crescem, o predador à espreita. Não há glamour nas tragédias. Nossa única doença é sermos mulher. Mas não queremos cura fácil.
 
Novena para Pecar em Paz mostra aquele que nasceu em corpo de homem, mas pensa e age como se mulher fosse. Entre a divisão e a diversão, as certezas de que somente existe isso e aquilo e que aqueloutro está fora de qualquer consideração.  A infelicidade e a intolerância. (...) minha preocupação era que a certidão de óbito teria um nome que não sou eu.

Novena para Pecar em Paz sussurra, fala, grita sobre esse acordar com saudades de umas coisas que não têm nome. As noites intermináveis em que ninguém responde aos chamados de socorro. A vastidão do mundo restrita ao território de uma cama. Dormir, dormir.

Novena para Pecar em Paz também vai ao supermercado. A história familiar costuma cobrar caro pelo passado. Escolher essa marca e não a outra. Ultrapassar a porta da loja, divisória entre aqueles que consomem e aqueles que esmolam. Os olhos quietos em mútua compreensão. A distância entre os seres humanos se prolongando. A culpa em formato de algumas moedas.

Novena para Pecar em Paz revela muitos pecados e nenhuma oração. O desejo de fuga. Abandonar tudo. Ir embora. Sem olhar para trás. Sem remorsos. Sem desculpas. Abraçar uma nova vida. A impossibilidade. Menos cansativo é comprar sorvete para a filha. Antecipar a textura cremosa que em breve tocará minha língua e descerá pelo esôfago de um corpo que já não existe.   
 
Novena para Pecar em Paz reflete o desconforto. Preces e feridas, ausências e temor. Noves fora, qual é o grau de intensidade da dor da mãe que precisa escolher a roupa com que a filha vai ser enterrada? Haverá ritual mais triste?

Novena para Pecar em Paz: Beatriz Leal Craveiro, Cinthia Kriemler (Org.), Lisa Alves, Lívia Milanez, Maria Amélia Elói, Mariana Carpanezzi, Patrícia Colmenero, Paulliny Gualberto Tort e Rosângela Vieira Rocha.   

P.S: A capa é da Mariana Carpanezzi.   

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

O FOGO NA FLORESTA



Os delírios causados pelo autoengano da classe média brasileira. Se não fosse tão assustadora e, por extensão, tão próxima da realidade, essa poderia ser uma síntese aceitável do romance O Fogo na Floresta, de Marcelo Ferroni. O problema – sim, isso é um problema – é que a literatura brasileira contemporânea adora ficar se esfregando em devaneios econômicos, em conflitos superficiais, e se esquece de abordar questões mais importantes e menos dramáticas.

No ano de 2010, dois anos antes das Olimpíadas de Londres, a editora Guanabara (nome fictício, embora não pareça) estabelece um plano de metas para publicações e vendas. Em linhas gerais, é por esse caminho – os bastidores do mundo editorial – que se movimenta parte da trama. O ambiente insalubre e a luta intestina corroem todo e qualquer instante de tranquilidade ou criatividade que possa surgir. A mistura antagônica de diversos ingredientes (ambição, inveja, incompetência, etc.) impede que a lucidez prevaleça. Na guerra cotidiana pela sobrevivência não há lugar para os inocentes. A precariedade se instala.

Simultaneamente, a vida sentimental e econômica de Heloísa Peinado, a protagonista, está encapsulada em várias outras histórias. Oscilando entre a ambição desmedida e a alienação, ela tenta driblar as armadilhas geradas por um casamento infeliz. A incomunicabilidade com o marido causa uma espécie de catatonia. Filha de um tempo em que algumas mulheres consideram a maternidade um empecilho para o sucesso profissional, ignora os cuidados que o filho pequeno requer. Ao seu redor a realidade objetiva desaparece. Esse ambiente caótico pode ser traduzido em uma equação banal: obter um pouco de felicidade instantânea é igual ao rompimento de algumas barreiras éticas e morais.

Na primeira oportunidade, Heloísa trai o marido. É uma forma de sair da rotina, de romper com a inércia, de instaurar a alegria. E engana-se quem pensa em estruturas românticas ou em desatinos causados pelo amor. Heloísa não entende essas banalidades. Embora não manifeste, ela está ciente de que o amante é um arrivista inepto, um desses sujeitos que imagina grandes golpes comerciais e que não dispõe de habilidade para executá-los. O que ela quer é a novidade. Ou melhor, a fuga de um ambiente opressor.

Heloísa representa a catástrofe (o desastre inconsequente)  se alastrando como o fogo na floresta.

Com relação à carpintaria do romance, há o uso de recursos interessantes: a narrativa foi descosturada e é apresentada em cinco capítulos e inúmeros fragmentos. O uso alternado do tempo (passado remoto, passado mais próximo, presente) também ajuda no dinamismo. A intersecção de um capítulo sobre um navio que fica encalhado na Antártida faz o leitor se perguntar: o que isso faz aqui? Obviamente, precisa-se continuar a leitura para descobrir o que está acontecendo. Infelizmente, é só fogo de palha – o que não invalida o truque. Outra sacada (ou sacanagem) com algum fundamento está no reencontro entre Heloísa e um colega de colégio ("Big" é citado no primeiro capítulo). Mas, nesse caso, há total desperdício da situação – Heloísa não está conectada com as lições oferecidas pela vida.

A grande restrição está localizada em outro lugar de O Fogo na Floresta: o uso narrativo de uma série de marcas comerciais. As ocorrências são inúmeras: Consul (p. 34, 64), McDonald’s (p. 50, 65), Moët Chandom (p. 53), Taittinger (p. 53), Claro (p. 62 e seguintes), Ponto Frio (p. 63), Pringles com Coca Zero (p. 154), Tok&Stok (p. 167), Adidas (p. 212), Quatro Rodas (p. 246). Se a ideia era produzir algum tipo de contato com o mundo da classe média, o leitor não percebe essa sutileza. Os outdoors narrativos, misturando itens de alto e baixo padrão, sem muito critério, tornam irrelevante qualquer reflexão sobre o tema. Além disso, esse artifício sequer é novo – foi utilizado “ad nauseam” por escritores medianos como Bret Easton Ellis, em O Psicopata Americano (1991) e Glamorama (1998) ou Lolita Pille, em Hell Paris – 75016 (2002) e Buble Gum (2004).

Salvo uma ou outra cena, aqui e ali, O Fogo na Floresta é mais do mesmo. E entenda-se que “o mesmo” se satisfaz em descrever o que já está descrito em centenas de outras narrativas – embora com roupagens e linguagens diferenciadas.  


P.S: Na “orelha”, um redator muito criativo afirma que Heloísa é uma herdeira direta de Emma Bovary. Heresia.   



quarta-feira, 1 de novembro de 2017

SOBRE GATOS



Os gatos – provavelmente – são os animais domésticos mais fáceis de serem antropomorfizados pela ficção. Neles encontramos (imaginamos) todas as características (qualidades e defeitos) que consideramos como atributos humanos: coragem, determinação, egoísmo, rebeldia, maluquice, fofura, altivez, preguiça, sensualidade, ausência de escrúpulos,... A lista se estende por centenas de substantivos e adjetivos. Gatos e indivíduos – de certa forma – são semelhantes. Também são muito diferentes. Talvez a principal distinção esteja na forma com que um vê o outro. Enquanto os humanos escolhem os felinos como animais de estimação, os gatos aceitam os humanos como escravos (que devem protegê-los, amá-los e alimentá-los – não necessariamente nessa ordem).  

Há cerca de 250 raças de gatos domésticos (Felis silvestris catus) e, dependendo de alguns fatores (alimentação, habitação, cuidados veterinários, etc.), vivem entre quinze e vinte anos. No imaginário contemporâneo, onde há espaço para representações sentimentais das melhores e das piores idiossincrasias humanas (maldade, esperteza, preguiça, lealdade, carinho, etc.), os gatos aparecem como personagens emblemáticos das revistas em quadrinhos, dos desenhos animados e dos contos de fadas: Thomas (Tom & Jerry), Frajola, Garfield, Gato Felix, Gato de Botas, Manda-Chuva (e sua turma: Batatinha, Xuxu, Bacana, Espeto e Gênio), entre outros.

Conta a lenda que, quando os seres humanos resolveram se fixar na terra e viver da agricultura, a produção e o armazenamento de cereais (grãos) atraiu várias espécies de roedores. Nesse momento, os gatos domésticos, que são exímios caçadores, se tornaram imprescindíveis. No Egito antigo recebiam atenção e devoção – eram considerados como representantes dos deuses na Terra. Também recebiam esse tratamento na Pérsia. Na Europa ajudaram no combate à peste negra. No início da Idade Média, quando a superstição se mostrou mais forte do que a razão, houve uma reversão comportamental: os gatos foram acusados de serem portadores de maus espíritos. Muitas vezes, na companhia de pessoas acusadas de bruxaria, foram queimados em praça pública. Surpreendentemente, essa herança irracional se projeta na atualidade: há quem considere que os gatos (principalmente os pretos) estão ligados ao azar ou à má sorte. Pura superstição – cabe dizer. Em todo caso, não se pode desprezar que os hispânicos costumam dizer que Yo no creo em brujas, pero que las hay, las hay.

Doris Lessing (1919-2013), ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura 2007, autora de vários romances de incontestável qualidade, era apaixonada pelos gatos domésticos. Filha de um oficial britânico, que foi transferido muitas vezes, precisou morar em diversos lugares do mundo. Nasceu na Pérsia (atual Irã) e residiu (na infância e adolescência) na Rodésia do Sul (atual Zimbábue). Mais tarde, adotou a Inglaterra como lar. Em todos esses lugares, que são muito diferentes entre si, os felinos foram companheiros de praticamente todos os momentos. Os três textos que integram o livro Sobre Gatos, com tradução de Julia Romeu, relatam, em tom memorialista, sem se ater à ordem cronológica, a história de alguns dos animais que deram cor à sua (dela) vida.


Há relatos de todo tipo. Desde a necessidade de “se livrar” de uma ninhada (doações, extermínio) até depoimentos de amor explicito por animais que ultrapassam as barreiras zoológicas e se tornaram, digamos, integrantes da família. No entanto, por mais que isso pareça importante, não há como ignorar que Na infância, as pessoas, os animais, os eventos surgem, são acolhidos e desaparecem, sem que nenhuma explicação seja oferecida ou requisitada. Ter um animal de estimação implica em perda, em recordações, em cicatrizes, em luto.

Depois de certa idade – e, para alguns de nós, isso pode ocorrer muito cedo – não existem novas pessoas, animais, sonhos, rostos, acontecimentos: tudo já aconteceu antes, já apareceu antes, com outra máscara, outras roupas, outra nacionalidade, outra cor; mas é igual, igual, tudo é eco e repetição; e não há nem dor que não seja uma recorrência de algo há muito esquecido que se expressa numa angústia inacreditável, em dias de lágrimas, solidão, consciência da traição; e tudo por um gato pequeno, magro e moribundo. 


A aspereza das palavras de Doris Lessing remete a um caso emblemático, ocorrido na infância. Doente, a menina foi alojada nos fundos da casa. A gata, uma persa cinza-azulada, costumava dormir com ela. Como o encanamento na fazenda era precário, um dia a gata caiu em uma bacia de água quente, que estava no quarto. O dano foi grande. O corpo queimado resistiu – durante algum tempo. Ficou nos meus braços por uma semana, ronronando, ronronando, numa vozinha rouca e trêmula que foi se tornando cada vez mais fraca, até silenciar; lambeu minha mão; abriu os enormes olhos verdes quando a chamei e lhe implorei que vivesse; fechou os olhos e morreu.

Não surpreende que o parágrafo seguinte expresse uma promessa: 

Pronto. Nunca mais. E durante anos fiquei comparando gatos em casas de amigos, gatos em lojas, gatos em fazendas, gatos na rua, gatos em muros, gatos na memória como aquela criaturinha doce e cinza-azulada que ronronava e que para mim era o gato, o Gato, impossível um dia de ser substituído.


Levou 25 anos para que essa promessa fosse quebrada. Em Londres ocorreram várias mudanças.  Os gatos passaram a ser sinônimo de alegrias e boas lembranças. E, claro, de algumas dificuldades. Caixas de areia, períodos de cio, disputas por territorialidade, instinto predador, doenças, morte – a vida urbana também se apresenta complicada para os felinos.  

São muitos momentos afetivos. São muitos momentos aflitivos. São situações engraçadas, trágicas, insólitas e humanas. Impossível, por exemplo, ignorar as epopeias de Rufus e “El Magnífico” (também chamado de Butch, Butchkin, General Pinknose, o terceiro). Eles foram, provavelmente, os dois gatos mais amados de Doris Lessing. De maneira particular, cada um deles foi um espécie de filho muitas vezes malcriado, mas filho!

Rufus morava por perto. Onde? Ninguém nunca soube. Talvez fosse um sem-teto. Foi no verão de 1984. Primeiro, uma tigela de água – ele bebeu tudo e pediu mais. Depois, deram a ele algum alimento. Era um gato laranja (uma cor maravilhosa, cor de fogo, como uma raposa). Estava malcuidado, o pelo sujo, o corpo repleto de cicatrizes. Aos poucos, como se estivesse sido convidado, ele foi se aproximando. Brincávamos dizendo que era o nosso gato externo. Outros dois gatos habitavam a casa.

O calor acabou e começou a chover. O gato laranja ficou na varanda, debaixo da chuva, com o pelo escurecido pela água que caía, olhando para mim. Abri a porta da cozinha e ele entrou. Eu disse para ele que podia usar aquela cadeira; aquela era a sua cadeira e ele não podia pedir mais. O gato subiu na cadeira, se deitou e me olhou fixamente. Tinha o ar de alguém que precisa aproveitar ao máximo o que o Destino lhe oferece antes que a oferta seja retirada.


Rufus estava doente. A luta pela sobrevivência havia sido dolorosa. Nós o escovamos. Limpamos seu pelo.  Demos um nome a ele. E o levamos ao veterinário, reconhecendo, dessa forma, que tínhamos um terceiro gato. O que se seguiu foi a invasão – lenta, gradual, amorosa (apesar da oposição dos outros dois gatos). Impossível resistir ao charme de um animal que conhece os mecanismos da sedução. Apesar de seus últimos dias revelarem um retrato da decadência, Rufus foi um guerreiro.  
        
Com “El Magnífico” foi tudo bem diferente, porque todas as histórias são singulares – mesmo quando parecem iguais.

Ele gosta quando relaxamos juntos. Mas não é uma coisa fácil de fazer. Não adianta me sentar perto dele quando estou com pressa, ou pensando no que deveria estar fazendo na casa ou no jardim, ou no que deveria estar escrevendo. Há muito tempo, quando ele era filhote, aprendi que esse gato exigia a total atenção de alguém, pois sabia quando minha mente estava dispersa, e não adiantava fazer carinho nele mecanicamente, pensando em outra coisa, e muito menos lendo um livro. No segundo em que eu não estava mais presente, com foco absoluto nele, Butchkin se afastava. Quando me sento para estar com ele, isso significa que preciso desacelerar, me livrar da angústia e da urgência. Quando faço isso – e ele tem que estar no humor certo também, sem sentir dor, sem estar inquieto –, Butchkin sutilmente me mostra que compreende que estou tentando me aproximar dele, do gato, da essência do gato, encontrando o que há de melhor nele. Humana e gato, tentamos transcender aquilo que nos separa.    


Sobre Gatos é uma elegia, um poema em prosa, o comprovar do quanto é exata a definição de Leonardo da Vinci: o menor dos felinos é uma obra de arte.
   

P.S. 1) Em Os Possessos – aventuras com os livros russos e seus leitores, de Elif Batuman, há uma revelação estranha. Sófia [Sônia] Andréieva, esposa de Liev Nikoláievich Tolstói, era ailurofóbica (não gostava de gatos). O controle dos roedores na propriedade da família, Iásnaia Poliana, era realizado por... acredite se quiser, cobras.     

P.S.2) Para aqueles que se interessam pelo abordagem ficcional do tema, há boa diversão em Os Melhores Contos de Cães e Gatos (Org. Flávio Moreira da Costa. Ediouro), Sete Vidas: sete contos mínimos de gatos (Heloisa Seixas. Cosac & Naify), Os Gatos (Patricia Highsmith. L&PM), Entre Arranhões e Lambidas: haicais & gatos (Alvaro Posselt. Blanche), Um Gato Indiscreto e outros contos (Saki. Hedra), Eu Sou um Gato (Natsume Soseki. Estação Liberdade), A Gata, Um Homem e Duas Mulheres (Jun'ichiro Tanizaki. Estação Liberdade), Relatos de um Gato Viajante (Hiro Arikawa. Alfaguara), Reflexões do Gato Muir (E. T. A. Hoffmann, Estação Liberdade), Vou te Receitar um Gato (Syou Ishida, Intrínseca), entre outros.

P.S.3) Uma revisão mais acurada tornaria Sobre Gatos um livro melhor.