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quinta-feira, 21 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LX)


21 de maio, dia dos profissionais de Letras.
As três pétalas superiores da flor de lis representam a tríade
que compõe o curso: linguística, literatura e gramática.  


Em tempo pretérito, no século passado, com um exemplar de Aspectos do Romance, do E. M. Forster, nas mãos, projetei duas coisas. A primeira, relativamente óbvia, é que precisava conhecer um pouco de teoria da literatura para poder escrever poesia e ficção. A segunda, mais difícil de executar, precisava ter um diploma universitário. O dia a dia tinha me provado que não bastava saber ou fazer, era necessário estar situado no tempo e no espaço.

Foi assim (misturando, em doses desiguais, ingenuidade e racionalidade), que resolvi ser um profissional das letras. Não foi fácil. Na minha família, as questões intelectuais nunca recebiam crédito. Ao contrário, havia o entendimento que era uma forma sutil de fugir do trabalho. Compreensível. Meu pai e minha mãe eram quase ágrafos.

Lá pelos 18 anos, depois de desistir de cursar direito (passei no vestibular da UFSC), ingressei no curso de letras. Abandonei no segundo semestre. Era muito chato. Muita gramática e pouca literatura. Pior, a literatura era uma escada para ensinar gramática.

Assim não quero brincar, disse para mim mesmo, e mergulhei em outros livros de teoria. Ainda tenho o exemplar de A Estrutura do Romance, do Vitor Manuel de Aguiar e Silva, todo sublinhado a lápis, lições que, vez ou outra, tenho gosto de relembrar, porque aos mestres devemos devoção – sempre!

Vários anos depois, voltei aos bancos escolares. Ou melhor, voltei às letras. Sem piedade, aproveitei a ocasião para torturar professores e colegas de curso. Nem mesmo o pessoal que trabalhava na biblioteca escapou. Mentiria se dissesse que não me diverti. Além disso, como odeio solenidades e o meu currículo era diferente do das turmas regulares, optei por me formar em gabinete. Não tenho nenhuma fotografia desse período.

Dr. Lauro Junkes (1942-2010)

Mais alguns anos se passaram e resolvi dar mais um pouco de substância aos meus fantasmas particulares. O Doutor Lauro Junkes (1942-2010) aceitou me orientar no Mestrado, na UFSC. Como era de se esperar, fui um péssimo aluno. Faltei muitas aulas, entreguei trabalhos fora do prazo, iniciei discussões estéreis e estiquei até o infinito a entrega do texto final. Semanalmente, com paciência de monge budista, ele me enviava e-mails pedindo notícias, querendo que eu entregasse alguns capítulos. Também solicitava minha presença em Florianópolis. Finalmente, consegui terminar a dissertação. Naquele tempo, os meios de transmissão eram precários, a Internet não era acessível para todos, muitas vezes era mais fácil (e seguro) imprimir os textos. Como “sou do contra”, e estava no meio de uma crise econômica, levei o trabalho em disquete – que, obviamente, não abriu no computador do mestre. Foi um momento de perplexidade. E que se multiplicou, porque quebrei o disquete em vários pedaços e os joguei no lixo. Lauro pensou que eu tinha enlouquecido. Não seria o primeiro, nem o último, caso de maluquice entre alunos. Lembro desse momento com um sorriso nos lábios. Ele também riu quando me viu tirar outro disquete da mochila. Imediatamente, salvou o texto no computador, queria distancia da desgraça. Alguns dias depois, recebi um e-mail sugerindo algumas mudanças, coisas mínimas, e propondo uma data para a defesa. Em fevereiro de 2000, tornei-me Mestre em Literatura Brasileira.

Como dizia minha avó, quem está na chuva não deve ter medo de se molhar. Ingressei no doutorado uns dois ou três anos depois. As coisas correram mais suaves desta vez. Tornei-me assíduo freguês da Reunidas, empresa de ônibus que me levava e trazia toda semana. Saía de casa no início da manhã e voltava no mesmo dia, durante a madrugada. Mas, assim como um tigre não perde as suas manchas, atrasei a entrega de trabalhos, inclusive vários capítulos da tese. A Doutora Tânia Ramos, minha mui ilustre orientadora, quase perdeu a paciência comigo. Contornei a crise mandando quilos de anotações. Literalmente. O texto final tem mais de 800 páginas – e ainda hoje o vejo como incompleto. Poderia ter escrito muito mais sobre aquele tema. Em compensação, foi o melhor período da minha vida de estudante. Dormia e acordava pensando em literatura.

Em 2008 se tornei doutor em literatura. O primeiro (e único) da minha família a atingir esse grau acadêmico. Foi a gota d’água. Disse para mim mesmo que era hora de parar, estava perto do meio século de vida, o corpo estava precisando de sombra e água fresca.


Olhando para o ilustre herdeiro de minhas dívidas e dúvidas, percebo que há outras histórias para viver.  De qualquer forma, a inquietação continua. Mas, por enquanto vou tentando me manter no meu canto, cercado de livros. Tenho consciência de que amanhã ou depois ou depois ou nunca os pós-doutorados estão me esperando. Se os encontrarei, só os deuses do Olimpo podem responder.

Em que tudo isso resultou? Não sei formular uma resposta. O máximo que posso dizer é que, nesse percurso, fui/sou aluno, professor, escritor, leitor (não necessariamente nessa ordem). E que a literatura foi a minha tábua de salvação.        

quarta-feira, 20 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LIX)


É assim que o mundo termina, não como um estrondo, mas como um gemido. 
               (T. S. Eliot)

Thomas Stearns Eliot (1888-1965)

Quando tudo isso acabar e o novo normal se estabelecer, saberemos reconhecer o que sobrou de importante em meio aos destroços? A pergunta é retórica. Inclusive porque as palavras novo e normal não podem coexistir na mesma frase. E, se pudessem, não indicariam uma resposta. Nem agora e nem no futuro (próximo ou distante). Porque talvez não haja futuro. Estamos à deriva, no meio de mar bravio, a orquestra tocando alguma música dançante enquanto o choque contra o iceberg não acontece.

Sim, estou ciente de que essa metáfora está desafinada. Em momentos de crise, o tom sempre estará desafinado. Soube, na segunda-feira, que um dos motoristas de taxi do ponto em frente ao supermercado faleceu. Teve um acidente vascular cerebral (AVC) quinze dias atrás, talvez causado pela aflição de ter que (sobre)viver com a diminuição da renda mensal – pagar as contas está se tornando um fardo pesado demais para algumas pessoas. Toda vez que precisar de um motorista para me conduzir pelas vielas do povoado, sentirei falta de Pedro.

Um dos efeitos mais complicados da quarentena aparece no momento em que percebemos que estamos perdendo contato com o mundo “real”. O isolamento elabora uma sensação de não-pertença. É como estar vivendo em um mundo estranho, distante da realidade. Provavelmente, outras pessoas conhecidas também estão desaparecendo e só terei conhecimento disso mais tarde, talvez em alguma conversa ocasional.


Em alguns momentos, talvez para justificar a bolha onde me enclausurei, elaboro ficções. Imagino viagens para lugares longínquos, onde não há ligações telefônicas, onde a Internet não existe. Talvez não possa sequer mandar cartões postais. Não sei se esse proceder é saudável. Independente das distâncias e dos percursos, estamos indo sempre para casa, como lembra um dos personagens de Lavoura Arcaica, do Raduan Nassar.

Ouço a voz de John Lennon, em outro contexto, dizendo que Life is what happens to you / While you’re busy making other plans (A vida é o que acontece quando você está ocupado, fazendo outros planos). Deve ser isso. Ou algo parecido. Mas não dá para ignorar que de quinze em quinze minutos surge um profeta do apocalipse. Não é o meu caso. Ainda tenho muitas coisas para ver, muitos livros para ler, muitas bobagens para dizer/escrever, muitas desculpas para pedir. Não quero perder o grande espetáculo da vida.


Ah, que o T. S. Eliot me desculpe, nunca procurei medir a minha vida com colherinhas de café (I have measured out my life with coffee spoons), então prefiro que o fim do mundo aconteça (se acontecer) com bastante barulho, talvez com uma banda de jazz tocando standards


terça-feira, 19 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LVIII)


Decalcomania, 1966 (René Ghislain Magritte, 1898-1967)


As assombrações fazem parte da vida do Outro. É isso o que gostamos de dizer. Doce ilusão. Quando menos se espera, os fantasmas acenam para nós. Ninguém está a salvo. Desta vez foi comigo. Nada muito importante. Mas, de qualquer forma, um sinal de que pode haver alguma coisa diferente rondando por ai.

Muitas pessoas estão relatando – nas redes sociais – que a pressão produzida pelo regime de quarentena está criando um pouco de inquietação. E isso se manifesta de várias maneiras. Ansiedade, alcoolismo e sonhos assustadores, por exemplo.

Como gosto de ficar em casa, estou em regime de abstêmia e as minhas noites de sono (nos últimos três meses) são absolutamente aborrecidas, pouco posso falar sobre essas sensações. Durmo entre seis e oito horas. Às vezes levanto no início da manhã para ir ao banheiro. Resolvido o problema, volto para debaixo das cobertas e durmo mais um pouco. Acordo descansado, pronto para enfrentar mais um dia de mesmice. Não tenho nenhuma lembrança significativa de sonhos ou pesadelos.

A exceção ocorreu na noite passada. Quer dizer, pela primeira vez em meses acordei sobressaltado. É que sonhei que estava no aeroporto, embarcando para uma viagem ao Afeganistão. Não bastasse o inusitado do destino, há um detalhe que precisa ser ressaltado. Por algum motivo, não sei qual, precisei sair do aeroporto e fui resolver algum assunto impreciso em lugar relativamente longe. Distraído, perdi a noção do tempo. Quando percebi, estava na hora do voo. Quis voltar rapidamente. Não consegui. Não havia táxi (ou qualquer tipo de condução) disponível. Sem alternativa, comecei a caminhar. Nesse momento, a sensação era de que o aeroporto estava localizado em algum ponto do infinito. A distância parecia aumentar a cada instante. A união do vento com a poeira tornou o ar irrespirável. Fiquei cansado. Foi nesse momento de aflição que acordei.    

Le Teléscope, 1963  (René Ghislain Magritte, 1898-1967)

Psicólogos e psicanalistas de botequim provavelmente farão interessantes análises do conteúdo simbólico desse sonho. Eu também fiz isso, num esforço medíocre de autoanálise. De qualquer forma, brincar com o onirismo tem lá o seu lance de dados (que jamais abolirá o acaso). Não tenho intenção de me perder nesse labirinto interpretativo – que talvez só possa resultar em algo prático se for para fazer alguma aposta no jogo do bicho, ação que, obviamente, não está na minha lista de afazeres prioritários.

O que estou dizendo/escrevendo é que vou continuar dispensando a ajuda teórica e prática do Sigmundinho – que acreditava que o sonho é uma espécie de projeção à realização do desejo. Também estou deixando de lado os outros rapazes que resolveram meter a colher torta no inconsciente alheio. Inclusive o Jung (forever young ou forever yang?), que, certa vez, afirmou que dentro de cada um de nós há um outro que não conhecemos. Ele fala conosco por meio dos sonhos.

Independente de estar certo ou errado, acredito que um sonho é um sonho um sonho um sonho. Mais do que isso é querer comer um pedaço da lua – por mais estranho que pareça, o mundo está repleto de pessoas que confundem o satélite com uma peça de queijo.        

segunda-feira, 18 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LVII)




Domingo de sol. Depois do almoço, coloquei uma cadeira na sacada. Fiquei lendo. Como trilha sonora João Bosco no festival Jazz San Javier, 2018 – acessei pelo YouTube. Usei fones de ouvido. Para evitar aborrecer os vizinhos, provavelmente adeptos de outros estilos musicais.  

Tive por companhia Teresa Viegas, uma portuguesa que ninguém sabe quem é. Mais um caso de escritor(a) que se esconde atrás de pseudônimo. O pouco que é de domínio público equivale a quase nada. Nasceu em 1945 e se formou em direito em 1968. Publicou sete livros. Com os contos de Uma Aventura Secreta do Marquês de Bradomín, de 2008, ganhou o Grande Prêmio de Conto Camilo Castelo Branco.

Alguém (quem?) fez alguma referência. Não lembro onde li isso, nem em que termos, mas faz algum tempo. Anotei o nome da escritora e fui procurar na Estante Virtual (que é uma espécie de baú do tesouro para quem gosta de livros). Descobri que dois dos seus livros foram publicados no Brasil. Comprei “As Enganadas” e “Uma Aventura Secreta do Marquês de Bradomín”. Foi barato. Não somaram R$ 33,00 os dois volumes, frete incluído. Parece que não há grande procura pela ilustre contista lusitana.

Neste momento, está à venda um terceiro título, livro importado, R$ 238.19. Creio que é justo pagar esse valor. Com o € cotado em aproximadamente R$ 6.25, basta multiplicar ou dividir, a escolha é do freguês, e temos, salvo engano, míseros € 38. Recusei a compra. Discordei daqueles R$ 0.19, que me pareceram um abuso.

Outro dia, os olhos passeando pelos escritores portugueses que habitam uma das estantes, vi os dois livros. Estavam adormecidos a mais de seis meses. Algo me disse que era hora de lê-los. Que assim seja, respondi ao chamado. Li primeiro o livro galardoado. E com dicionário por perto, pois, como é de conhecimento geral, embora o idioma seja comum, o vocabulário é estranhamente diferente. Palavras que não são de uso corrente deste lado do oceano (berma, cirieiro, telemóvel, alfarroba, etc.) atravessam o texto com bastante assiduidade.   

Impressionou-me a facilidade com que o texto se estabelece o pacto entre o narrador e o leitor. Aquele que conta o que quer contar, manejando o fluxo de informações, raramente consegue se aproximar do leitor. A história é somente dele, o leitor é mero espectador. Com o texto de Teresa Veiga não é assim, parece que ela, a escritora/narradora, está conversando com o leitor. O distanciamento, se existe, é mínimo. Apoiada na escassez de diálogos, vai envolvendo o leitor com a mesma tenacidade com que a aranha tece a teia que capturará a mosca.

Os contos de As Enganadas foram devorados – se é que posso usar essa expressão.  Encantei-me, em especial com A Morte do Jardineiro, uma narrativa que coloca em xeque o machismo, subvertendo as aparências, mostrando que é possível construir as relações afetivas através do jogo intelectual. Os argumentos que o marido usa para interpretar o fim do casamento são absurdamente adolescentes e se contrapõem ao racionalismo da esposa que – inesperadamente – emerge de uma vida de submissão. 


Resumindo, não posso dizer que gostei dos dois livros, como um todo. Creio que gostei de alguns contos. As Parcas que está em Uma Aventura Secreta do Marquês de Bradomín também é de alta qualidade, a vida interior sendo esmiuçada com perícia e um pouco de crueldade.  

domingo, 17 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LVI)




Quando encontro alguém que diz não ter qualquer tipo de preconceito gastronômico minha vontade de rir é quase incontrolável. Se não faço isso na frente da pessoa é para manter um mínimo de verniz civilizatório. Todo mundo tem algum tipo de alimento que detesta. Inclusive aqueles que adoram dizer que comem de tudo. Nenhum humano possui estômago de avestruz.

Para escândalo geral, não tenho qualquer tipo de afeto por feijão e camarão. Não se trata de alergia ou de algum trauma. Apenas não gosto do sabor. Ou seja, é um critério pessoal. Essa restrição alimentar costuma resultar em problemas graves. Além de ser visto como eternamente do contra, preciso ter diplomacia para superar as pequenas humilhações sociais. A principal é a de ter que explicar para os amigos que não sou fã do cardápio que está sendo servido. Em várias oportunidades em que fui almoçar na casa de conhecidos, enquanto os demais convidados se empanturravam com a feijoada, a minha refeição esteve reduzida a arroz branco, couve e laranja. Além disso, esporadicamente alguém me olhava com o mesmo interesse com que olharia para um alienígena.

Experiência similar costuma ocorrer com moqueca (embora eu não tenha qualquer restrição com peixes). Ou como aconteceu recentemente, quando alguém trouxe de Florianópolis vários quilos de camarão pistola. Para não passar fome precisei me contentar com um bife sola de sapato. E que foi preparado com visível má vontade.

Outra situação, essa mais antiga, se manifesta na presença da cebola e da uva passa.  Encontrar qualquer uma das duas no meio da comida é motivo suficiente para julgar se vale a pena continuar a refeição. Sei que dizer isso pode parecer drástico, mas... No caso da Allium cepa e similares, nada tenho contra o uso culinário. O que não suporto é a textura. Com a uva passa é diferente, a presença física do desidratado comestível causa-me horror.



Quando encontro cebola e/ou uva passa mantenho-me calado. Apenas demonstro. Lentamente surge um montinho na beira do prato. Ninguém, na mesa, consegue ignorar o meu protesto. Minha mãe (em tempo que não volta mais), para não brigar – mais uma vez –, em determinado momento passou a “não ver” esse ato de rebeldia.

O que vale destacar é que não estou sozinho nessa cruzada contra alguns ingredientes gastronômicos. A facção xiita está aumentando exponencialmente. Conheço indivíduos que não economizam discurso contra azeitonas, chuchu, beterraba, coentro, tomate, bifes de fígado, maracujá, morcilha e chouriço. Se não fosse (muito) ridículo essas pessoas subiriam em cima da mesa e usariam megafone para expressar – de forma inquestionável – a repulsa que sentem quando encontram o mínimo traço do alimento indesejado.

Como disse um filósofo desconhecido, as idiossincrasias humanas abrem as portas para estudos muito interessantes. No campo da psiquiatria, por exemplo. 

(P.S: por razões de segurança pessoal, evitei fazer menção aos hábitos nutricionais dos vegetarianos, veganos e usuários de formas alternativas de alimentação. Esses grupos são mais perigosos do que maionese estragada.).