21 de maio, dia dos profissionais de Letras. As três pétalas superiores da flor de lis representam a tríade que compõe o curso: linguística, literatura e gramática. |
Em tempo pretérito, no século passado, com
um exemplar de Aspectos do Romance, do E. M. Forster, nas mãos, projetei duas
coisas. A primeira, relativamente óbvia, é que precisava conhecer um pouco de
teoria da literatura para poder escrever poesia e ficção. A segunda, mais difícil
de executar, precisava ter um diploma universitário. O dia a dia tinha me
provado que não bastava saber ou fazer, era necessário estar situado no tempo e
no espaço.
Foi assim (misturando, em doses
desiguais, ingenuidade e racionalidade), que resolvi ser um profissional das
letras. Não foi fácil. Na minha família, as questões intelectuais nunca
recebiam crédito. Ao contrário, havia o entendimento que era uma forma sutil de
fugir do trabalho. Compreensível. Meu pai e minha mãe eram quase ágrafos.
Lá pelos 18 anos, depois de desistir de
cursar direito (passei no vestibular da UFSC), ingressei no curso de letras.
Abandonei no segundo semestre. Era muito chato. Muita gramática e pouca
literatura. Pior, a literatura era uma escada para ensinar gramática.
Assim não quero brincar, disse para mim
mesmo, e mergulhei em outros livros de teoria. Ainda tenho o exemplar de A Estrutura
do Romance, do Vitor Manuel de Aguiar e Silva, todo sublinhado a lápis, lições
que, vez ou outra, tenho gosto de relembrar, porque aos mestres devemos devoção
– sempre!
Vários anos depois, voltei aos bancos
escolares. Ou melhor, voltei às letras. Sem piedade, aproveitei a ocasião para
torturar professores e colegas de curso. Nem mesmo o pessoal que trabalhava na
biblioteca escapou. Mentiria se dissesse que não me diverti. Além disso, como
odeio solenidades e o meu currículo era diferente do das turmas regulares, optei
por me formar em gabinete. Não tenho nenhuma fotografia desse período.
Dr. Lauro Junkes (1942-2010) |
Mais alguns anos se passaram e resolvi
dar mais um pouco de substância aos meus fantasmas particulares. O Doutor Lauro
Junkes (1942-2010) aceitou me orientar no Mestrado, na UFSC. Como era de se
esperar, fui um péssimo aluno. Faltei muitas aulas, entreguei trabalhos fora do
prazo, iniciei discussões estéreis e estiquei até o infinito a entrega do texto
final. Semanalmente, com paciência de monge budista, ele me enviava e-mails pedindo
notícias, querendo que eu entregasse alguns capítulos. Também solicitava minha
presença em Florianópolis. Finalmente, consegui terminar a dissertação. Naquele
tempo, os meios de transmissão eram precários, a Internet não era acessível
para todos, muitas vezes era mais fácil (e seguro) imprimir os textos. Como “sou
do contra”, e estava no meio de uma crise econômica, levei o trabalho em
disquete – que, obviamente, não abriu no computador do mestre. Foi um momento
de perplexidade. E que se multiplicou, porque quebrei o disquete em vários
pedaços e os joguei no lixo. Lauro pensou que eu tinha enlouquecido. Não seria
o primeiro, nem o último, caso de maluquice entre alunos. Lembro desse momento
com um sorriso nos lábios. Ele também riu quando me viu tirar outro disquete da
mochila. Imediatamente, salvou o texto no computador, queria distancia da
desgraça. Alguns dias depois, recebi um e-mail sugerindo algumas mudanças,
coisas mínimas, e propondo uma data para a defesa. Em fevereiro de 2000,
tornei-me Mestre em Literatura Brasileira.
Como dizia minha avó, quem está na chuva
não deve ter medo de se molhar. Ingressei no doutorado uns dois ou três anos
depois. As coisas correram mais suaves desta vez. Tornei-me assíduo freguês da
Reunidas, empresa de ônibus que me levava e trazia toda semana. Saía de casa no
início da manhã e voltava no mesmo dia, durante a madrugada. Mas, assim como um
tigre não perde as suas manchas, atrasei a entrega de trabalhos, inclusive
vários capítulos da tese. A Doutora Tânia Ramos, minha mui ilustre orientadora,
quase perdeu a paciência comigo. Contornei a crise mandando quilos de anotações.
Literalmente. O texto final tem mais de 800 páginas – e ainda hoje o vejo como
incompleto. Poderia ter escrito muito mais sobre aquele tema. Em compensação,
foi o melhor período da minha vida de estudante. Dormia e acordava pensando em
literatura.
Em 2008 se tornei doutor em literatura. O
primeiro (e único) da minha família a atingir esse grau acadêmico. Foi a gota d’água.
Disse para mim mesmo que era hora de parar, estava perto do meio século de vida,
o corpo estava precisando de sombra e água fresca.
Olhando para o ilustre herdeiro de
minhas dívidas e dúvidas, percebo que há outras histórias para viver. De qualquer forma, a inquietação continua.
Mas, por enquanto vou tentando me manter no meu canto, cercado de livros. Tenho
consciência de que amanhã ou depois ou depois ou nunca os pós-doutorados estão
me esperando. Se os encontrarei, só os deuses do Olimpo podem responder.
Em que tudo isso resultou? Não sei
formular uma resposta. O máximo que posso dizer é que, nesse percurso, fui/sou aluno,
professor, escritor, leitor (não necessariamente nessa ordem). E que a literatura
foi a minha tábua de salvação.
Sei bem as agruras dos estudantes cinquentenário.Ainda esse ano, antes da pandemia, estava preparando minha volta a academia. Não sei como ficará agora minha volta. Vou vivendo um dia por vez!
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