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segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O SENTIDO DE UM FINN

A teoria da literatura valoriza qualitativamente alguns elementos. Por exemplo, episódios que não constituem a linha principal do que está sendo relatado. Em outras palavras, em alguns textos ficcionais ocorrem, simultaneamente, duas histórias (no mínimo). Uma delas, a explícita, está visível aos olhos do leitor. A outra, a encoberta, se mantém fora do alcance do leitor comum o máximo de tempo possível. Embora o encadeamento ocorra de forma paralela, muitas vezes essa bifurcação está situada em tempo narrativo distinto.

A magnífica novela O Sentido de um Fim, escrita pelo britânico Julian Patrick Barnes e vencedora do Man Booker Prize de 2011, possui essa característica. Na medida em que o texto vai escorrendo, de forma fluente, diante dos olhos do leitor mais atento, fica evidente que, no meio daquela simplicidade bem estruturada, está faltando a(s) peça(s) capaz(es) de completar o quebra−cabeças. Uma parte da história está escondida. Qual?

Com violência imperceptível, as 64 páginas iniciais projetam claridade capaz de queimar retinas. A linguagem bem−humorada, repleta de frases exatas e criativas, de piadas suaves, fornece sabor bastante peculiar. Inicialmente centrada na visão de um adolescente de classe média, que depois ingressa na universidade, curso de História, a narrativa em primeira pessoa está repleta de observações críticas sobre o ordenamento social inglês: (...) tínhamos fome de livros, fome de sexo, éramos meritocratas, anarquistas. Todos os sistemas políticos e sociais nos pareciam corruptos, entretanto nos recusávamos a considerar uma alternativa que não fosse o caos hedonista.

Eu descobri que essa pode ser uma das diferenças entre a juventude e a velhice: quando somos jovens, inventamos diferentes futuros para nós mesmos; quando somos velhos, inventamos diferentes passados para os outros, escreveu Tony, ao elaborar o resgate ficcional das histórias que uniam (durante o período escolar, nos anos 60) Anthony, Colin e Alexander. Essa amizade estava sedimentada na presunção de que eles eram mais inteligentes do que os outros alunos (Sim, é claro que éramos pretensiosos – para que mais serve a juventude?). A grande mudança na vida do grupo ocorre com a chegada de Adrian Finn (um rapaz alto e tímido que no início mantinha os olhos baixos e guardava seus pensamentos para si mesmo). Intelectualmente superior aos três, sempre escorado em discussões morais, Adrian logo se torna uma referência na sala de aula e na vida fora da escola (Essa era uma das diferenças entre nós três e o nosso novo amigo. Nós éramos essencialmente debochados, exceto quando éramos sérios. Ele era essencialmente sério, exceto quando era debochado. Nós levamos algum tempo para entender isso.)

Três significativos itens se agregam à narrativa: o suicídio de Robson, aluno de outra turma escolar, o ingresso na universidade (exceto Alex, que vai trabalhar com o pai) e Verônica Mary Elizabeth Ford, a primeira namorada de Tony. Cada uma dessas situações altera a equação monótona com que a vida costuma desafiar aqueles que ainda não entenderam o contexto em que estão inseridos.

A história que acontece debaixo do nosso nariz deveria ser a mais clara, e no entanto é a mais deliquescente, diz Tony, em um instante de lucidez. Como ele precisa desviar de algumas dificuldades para alcançar a extensão dos acontecimentos – e nem sempre consegue executar essa tarefa −, Verônica repete várias vezes, em diferentes circunstâncias, para ele, Você simplesmente não entende... Você nunca entendeu e jamais entenderá. Essa maldição se estenderá até a última linha do livro, quando o esclarecimento dos fatos ainda o atordoam, o deixam em grande inquietude. A ex−namorada insinua que Tony não passa de um simplório e que se alimenta de ilusões. Provavelmente essa afirmação também está direcionada ao leitor, pois todos os elementos dramáticos da tragédia estão explicitamente expostos na primeira parte da novela. Como ninguém (exceto o narrador onisciente) possui a chave de leitura, não restará outra opção senão ler mais 90 páginas. Afinal, Quantas vezes nós contamos a história de nossas vidas? Quantas vezes nós ajustamos, embelezamos, editamos espertamente? E quanto mais longa a vida, menos são os que ainda estão por perto para nos contradizer, para nos lembrar que nossa vida não é a nossa vida, mas apenas a história que nós contamos a respeito da nossa vida. Contamos para outros, mas – principalmente – para nós mesmos.

História é aquela certeza fabricada no instante em que as imperfeições da memória se encontram com as falhas de documentação, afirma Adrian, sem medo de estar manejando uma frase feita. Tony Webster, cerca de quarenta anos depois, depois de um longo período de hibernação emocional, acorda e precisa enfrentar o pesadelo. Era um daqueles envelopes brancos, compridos, com meu nome e endereço aparecendo numa abertura. Eu não sei quanto a você, mas eu nunca tenho pressa de abri−los. Um escritório de advocacia estava informando−o que ele era um dos favorecidos em um testamento. Na vida de um homem organizado − desses que se recusam empilhar louça suja na pia −, longe de ser um motivo de contentamento, esse fato atípico se transforma em uma espécie de curto−circuito emocional.

A herança, composta por quinhentas libras e os dois documentos, abre as portas de algumas circunstâncias mal resolvidas no passado. Uma delas, constrangedora, se refere ao fato que, algum tempo depois de seu relacionamento com Verônica ter sido rompido, Tony recebeu uma carta de Adrian informando−o que ele (Adrian) está iniciando namoro com Verônica. A primeira reação foi absolutamente britânica, cumprimentos e votos de felicidade ao casal. Depois... Bem, o fato é que tamanho despojamento emocional ecoa um dos princípios elaborados por Adrian, no tempo do colégio: Eu odeio o jeito que os ingleses têm de não admitir que estão falando sério. Eu realmente odeio isso. Inevitavelmente, o leitor não pode impedir uma série de perguntas: Quem está sendo sério? Quem está sendo irônico? Quem está enganado? Quem está se deixando enganar?

O diário de Adrian (que se suicidou aos 22 anos) era parte da herança deixada para Tony. Verônica se apossa desse documento e se recusa a entregá−lo. Esse conflito serve de faísca para recuperar o que havia sido esquecido, para dar voz aos retalhos e remendos que a memória soterrou no passado. Mas, também, para restabelecer a imagem de um grande amigo: Quando conversávamos e discutíamos, era como se ele tivesse nascido para colocar os pensamentos em ordem, como se usar o cérebro lhe fosse tão natural quanto usar os músculos para um atleta. (...) Adrian nos levava com ele na viagem do seu pensamento como se ele mesmo não acreditasse inteiramente na facilidade com que viajava. Ele entrava numa espécie de estado de graça – mas não era excludente. Ele nos fazia pensar que estávamos pensando junto com ele, mesmo que não disséssemos nada.

Afinal, qual é o sentido de uma morte? Qual o sentido do suicídio de Adrian Finn?

Ao contornar a corrosão imposta pelo tempo e resgatar o que estava aquém de sua compreensão, Tony descobre que o fio histórico não liga a vida concreta com a vida literária. Pouco importa o esforço, a falsa cortesia e o remorso. A elucidação do mistério (a herança e a história encoberta pelo suicídio de Adrian Finn) ocorre tardiamente, quando todos os esforços resultam inúteis para consertar o desastre ocorrido há tanto tempo atrás.

A coerência assume o centro do palco quando a história explicita se funde com a história encoberta. Os detalhes sórdidos que estruturam a juventude − assim como a Medusa − destroem aqueles que os olham de frente. Eu sobrevivi. "Ele sobreviveu para contar a história" – é assim que as pessoas falam, não é? A história não se resume às mentiras dos vencedores, como um dia afirmei com tanta desenvoltura ao Velho Joe Hunt; eu sei disso agora. Ela é feita mais das lembranças dos sobreviventes, que, geralmente, não são nem vitoriosos nem derrotados.

Lembrança dos velhos tempos: Em pé: Sir Kingsley William Amis e Patricia ("Pat") Olive Kavanagh. Sentados: Martin Louis Amis e Julian Patrick Barnes.

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