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quinta-feira, 20 de junho de 2013

GASTÓN DE ORLÉANS E ISABEL DE BRAGANÇA

Biografias são formas literárias que espelham o prazer de manipular o “real”. Sem constrangimento ou arrependimento. 

A vida adora imitar a ficção – e a ficção costuma fazer o mesmo com a vida. Aliás, nessa areia movediça, nada é impossível: falsificar documentos, omitir situações vergonhosas, edulcorar ações e circunstancias, inventar heroísmos. A imagem “perfeita” do biografado supera os escrúpulos e se mistura com a lenda. Ou seja, a verdade histórica difere da verdade concreta. Por isso, cabe ressaltar que a ingenuidade é uma hipótese intelectual inaceitável. História para boi dormir.

Em O Castelo de Papel, ensaio biográfico sobre a vida conjugal da Princesa Isabel de Bragança e de Gastón d’Orléans (Conde D’Eu), confiante que bajulação pouca é bobagem, a historiadora Mary del Priore, ignorando a inteligência dos leitores, não mede esforços para propor uma versão romântica do casamento real.

Louis Philippe Marie Ferdinand Gaston d'Orléans et Saxe-Cobourg et Gotha, Conde D’Eu, neto do deposto rei de França, Louis Philipe I, e filho de Louis Charles Philippe Raphael d'Orléans, Duque de Nemours, parecia destinado a ser um zé-ninguém na aristocracia européia. A sorte mudou quando o Imperador Dom Pedro II iniciou as tratativas para encontrar esposos para as filhas mais velhas. Queria para a herdeira do Trono, Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon, alguém que fosse esquivo, calado, doméstico, inútil, sem opinião e sem temperamento forte. Para Leopoldina Teresa Francisca Carolina Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon, as exigências eram mais modestas. Depois que alguns candidatos declinaram da honra, Gastón e seu primo Ludwig August Maria Eudes von Sachsen-Coburg und Gotha (Gusty) embarcaram para os confins do mundo para conhecer a herdeira do trono e sua irmã. Ou melhor, o negócio nº 1 e o negócio nº 2 – forma “gentil” com que o Duque de Nemours tratava as princesas nas cartas que enviou ao filho. Chegaram ao Brasil no dia 02 de setembro de 1864.

Família real brasileira
Além dos horrores da viagem e da pobreza do castelo real, os rapazes tiveram uma surpresa bastante desagradável quando encontraram as futuras esposas: elas eram feias. Para os padrões da nobreza europeia, horríveis.

Os casais se formaram por imposição do Imperador. Aconselhado por Luisa Margarida de Barros Portugal, a Condessa de Barral (que foi, durante muitos anos, sua amante), preferiu Gastón como consorte real. Gusty reclamou um pouco, mas foi só para manter as aparências. 

Isabel e Gastón
O casamento de Gastón e Isabel se realizou em 15 de outubro de 1864. E o resto da história se parece com roteiro de cinema hollywoodiano. Salvo a dificuldade de Isabel engravidar nos primeiros anos, a versão proposta por Mary del Priore sugere um casamento feliz, desses em que os interesses escusos se transformam em amor – ou algo parecido.

Mary del Priore, em diversos momentos de O Castelo de Papel, sem a mínima cerimônia, exclui questões essenciais para entender a história do Império brasileiro. Por exemplo, para não macular a tese da felicidade conjugal, aceita como provas incontestes de alguns episódios da vida privada do casal herdeiro do Império a correspondência ativa e passiva da Condessa de Barral e alguns jornais da época. Qualquer aluno de História sabe que esse tipo de documento não merece muito crédito. Interesses velados se confundem com objetivos escusos. A nobreza europeia e brasileira era pouco nobre quando a meta social estava escorada no manter as aparências.

Dissimulada, Mary del Priore preenche os espaços vazios com suposições e literatura. O exemplo mais significativo aparece na série de elogios que tece à participação de Gastón de Orléans na Guerra do Paraguai. Quem procurar por informações sobre a selvageria sangrenta que manchou a História Sul-Americana constatará que Julio José Chiavenatto discorda do heroísmo do Conde D’Eu. Em Genocídio Americano – a Guerra do Paraguai (livro que não consta das referencias bibliográficas), afirma que Gastón de Orléans foi um criminoso de guerra. Entre outras atrocidades, após substituir o Marquês (futuro Duque) de Caxias como comandante das tropas brasileiras, mandou incendiar o hospital de Peribebuy – todos os enfermos, velhos e crianças, morreram queimados. O hospital em chamas ficou cercado pelas tropas brasileiras que, cumprindo ordens desse louco príncipe louro, empurravam à ponta de baionetas para dentro das chamas os enfermos que milagrosamente tentavam sair da fogueira, relata Chiavenatto.

Nenhum comentário sobre esse episódio. Ou sobre outros que possam manchar a reputação do casal imperial. Quer dizer, quase isso. Enquanto a princesa Isabel recebe vários rótulos pejorativos (pouco preparada para suceder o Imperador, indecisa, carola) e há vários comentários sobre a decadência física e mental do Imperador, o "francês" é incensado por ser um diplomata e por assumir uma posição discreta diante das reviravoltas da política brasileira. Também recebe elogios por ser abolicionista. Enfim, um cavalheiro que sabe o seu lugar. Na saúde e na doença, na vida e na morte. Tanto que, com a queda do Império, acompanhou sua digníssima esposa ao exílio. Grande sacrifício familiar. Voltou para Europa, voltou para a família européia. Na versão ficcional de Mary Del Priore, deixou para trás um país selvagem que sempre o tratou mal.

Talvez o grande lapso dessa biografia seja a ausência de informações sobre o que aconteceu com a família real depois da Proclamação da República. São cerca de 30 anos resumidos em 20 páginas (Isabel morreu em 1921 e Gastón em 1922).

Enfim, O Castelo de Papel não convence como biografia. Nem como ficção. 

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