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segunda-feira, 7 de outubro de 2013

DIVÓRCIO

Todas as histórias de amor terminam mal. E isso quer dizer que a guerra que se segue à separação física jamais significará o fim da história emocional. Independente do grau de “civilidade” dos envolvidos, nunca mais será possível evitar os destroços psicológicos. Não há como contornar a dor, o ressentimento, o ridículo. 

Talvez seja isso o que ambiciona esclarecer a narrativa Divórcio – texto amargo, repetitivo, contraditório, repleto de lamurias e muito diferente de todos aqueles que ostentam o nome Ricardo Lísias na capa.

Divórcio, uma história pequena, cheia de personagens mesquinhas, foi estruturado com uma linguagem próxima do leitor, como se fosse uma conversa informal entre amigos, dessas em que segredos são revelados e discutidos. Soma-se a isso o uso do narrador em primeira pessoa, elemento literário que coloca em risco as informações transmitidas. A parcialidade, longe de ser uma dádiva, é uma maldição – como percebeu Machado de Assis ao forjar um de seus personagens mais emblemáticos, Bentinho (santo protetor de todos os portadores da dor-de-corno).

Escorado no sofrimento romântico, herdado das narrativas que fizeram sucesso de público e de crítica nos séculos XVIII e XIX, Ricardo Lísias, personagem e narrador do livro escrito por Ricardo Lísias, ao descobrir “algumas verdades” escritas nas páginas do diário da esposa, entra em pânico. Ou melhor, perde a capacidade reflexiva. E transforma o seu talento literário em arma de destruição em massa. Sem se importar com os danos colaterais (jornalistas e advogados são as principais vítimas), atravessa as 237 páginas do seu inferno particular lambendo feridas, encenando a cultura do abandono, protagonizando a figura do homem rejeitado. Quem dá alguma chance para o amor fica vulnerável, explica. 

Não há uma palavra de ficção nesse romance, afirma o personagem/narrador/autor. Em outro momento revela que o Divórcio é um livro de ficção em todos os seus trechos. O suplício de um escritor é não conseguir traduzir em palavras o discurso que está enunciando. Por isso, essas duas declarações contraditórias merecem atenção e um pouco de dúvida. Em primeiro lugar, o uso da palavra romance para identificar a classificação gramatical de algumas narrativas requer cautela. Embora o romance seja um gênero literário complicado, sustentado por condições históricas e sociais muito específicas, isso não quer dizer que seja incapaz de superar algumas regras de estrutura. As inovações de forma e linguagem servem para ampliar o jogo semântico e estrutural. Marthe Robert, em Romance das Origens, Origens do Romance, lembra que A verdade do romance não reside em outra coisa senão em um aumento de seu poder de ilusão.

Para alguns teóricos, transformar experiências pessoais em literatura não amplia o poder de ilusão ficcional. Ao contrário, implica em risco, em riso. Ou isca. Sempre há alguém disposto a cair na armadilha. Independente dos episódios que integram o texto serem “reais” ou “falsos” (categorias filosóficas capazes de provocar discussões intermináveis), o hibridismo da autoficção, gênero nem isso nem aquilo, nem romance nem autobiografia, se concentra em doses maciças de narcisismo. O uso excessivo do “eu” poucas vezes se mostra capaz de perceber que a narrativa não deve ser confundida com partidas de xadrez, onde os jogadores se divertem semeando ciladas pelas 64 casas do tabuleiro.

Só gente vulgar não gosta de silêncio, declara o personagem/narrador/autor, esquecendo que sente prazer em espalhar o barulho. Independente de qualquer justificativa, Divórcio é um texto muito ruidoso. Seja pelo uso propositalmente repetitivo de algumas informações, seja pela forma com que o pathos (paixão, sofrimento, doença) multiplica o litigio amoroso. Ao não economizar a verborragia, elimina a possibilidade de uma reflexão mais aprofundada. Ou seja, em lugar de acrescentar, subtrai. E isso também incomoda. Inclusive porque reforça a ideia de que escrever sobre o rompimento amoroso implica em demonstrar insegurança, em ressentimento incontrolável e em exigir e exibir vingança.

Além disso, para constrangimento do leitor, em alguns episódios – e não são poucos – prevalece a falta de elegância. Mesmo nos momentos em que acrescentam densidade ao drama relatado pelo personagem/narrador/autor, as cenas de descrição sexual não combinam com a lucidez estética de livros anteriores como Duas Praças (2005) ou O Céu dos Suicidas (2012). Mesmo admitindo que o fracasso do casamento, que durou apenas 40 dias, produziu mudanças comportamentais significativas, o “choque de realidade” que Lísias apresenta ficcionalmente ao leitor assusta. Muito.

Ao jogar farofa no ventilador, sem temer o estrago emocional ou a exposição pública, o personagem/narrador/autor decide enfrentar a dor mais pungente que pode afligi o ser humano: a insensatez amorosa. Unindo destempero, desespero e desamparo, transforma a vida pessoal em literatura-verdade (talvez o mais ridículo dos oximoros ficcionais). Falta-lhe o distanciamento afetivo e a invenção de, por exemplo, Intimidade, romance escrito pelo inglês (ou paquistanês) Hanif Kureishi, que, por outro ângulo, aborda a dissolução do casamento.

O exercício de humilhação pública e do remoer infinito do dilaceramento atinge o seu momento máximo no capítulo treze. Estou escrevendo um romance sobre o amor e o que as pessoas podem fazer com ele quando estão corroídas, explica o personagem/narrador/autor, como se os diversos argumentos “lógicos” que apresenta fossem suficientes para ratificar todo o esforço que dispendeu para efetivar a construção argumentativa. Ironicamente, dois parágrafos depois, deixa escapar que A verossimilhança deixou de ser um imperativo para a ficção. Ou seja, preocupado em parecer malvado não consegue mimetizar a fratura emocional, não consegue construir literariamente uma versão particular dos Fragmentos do Discurso Amoroso que (de)compõem a narrativa. Tampouco recupera a figura feminina – uma representação do inimigo – como elemento capaz de transcender o rancor e o ódio.

Divórcio talvez possa ser sintetizado em outra frase da narrativa e que, no transcurso do texto, o personagem/narrador/autor tudo faz para ignorar: O amor não é um jogo, mas sim um romance. É melhor colocar o ponto final em um para fazer outro.


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