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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

NIHONJIN



Poucos romances brasileiros se preocuparam em retratar as dificuldades do imigrante. O discurso oficial de que somos um povo cordial (embora formado por três raças tristes) costuma encobrir o preconceito, as diferenças culturais e a forma predatória com que foram tratados todos aqueles que, por diversos motivos, precisaram abandonar seus países de origem para viver na idolatrada salve salve. 

Um dessas exceções, Nihonjin, escrito por Oscar Nakasato, restaura parte da história dos japoneses no Brasil. Cada capítulo do romance acrescenta uma camada de informações ao conflito do desenraizamento. As lembranças familiares – diante dos olhos do leitor – fluem com ternura, embora, em diversos momentos, misturem alegrias e encanto, sofrimento e perdas.

O narrador, Noburu, um dos netos de Hideo Inabata, com a simplicidade de quem respira, toma para si a tarefa de recuperar parte das ruínas familiares. Começa explicando as razões da imigração de seu avô, no início do século XX. Depois, descreve as dificuldades de adaptação em um país estranho, a morte da primeira esposa do Ojiichan, o segundo casamento, o esfarelamento do sonho de voltar ao Japão. São os filhos do patriarca (Hanashiro, Hitoshi, Haruo, Sumie, Hiroshi e Emi) que acenam para o caminho que surge no horizonte. Ao escolher entre a identidade cultural dos antepassados e o futuro proposto pela modernidade percebem que é impossível escapar incólume ao sistema repressivo imposto pela tradição histórica.

Nesse momento de transição geracional, onde o mundo rural dos avós entra em conflito com o mundo urbano dos netos, surge em cena o personagem mais carismático de toda a narrativa. Inquieto desde criança, sempre colocando em xeque os hábitos culturais que impediam a integração com os brasileiros, Haruo conseguia irritar o seu pai – um homem silencioso, que internalizava os sentimentos ao ponto de dizer que as palavras não foram inventadas para serem desperdiçadas. Defensor da ideia que o trabalho e a determinação forjam o caráter, Hideo exigia obediência cega dos filhos. Por isso, ao tomar conhecimento que Haruo cometeu uma falta grave, decide corrigir a indisciplina do filho com um kinshin. O menino deveria passar uma semana fora de casa, com apenas a roupa do corpo e um par de sandálias. Diante da adversidade, o infrator deve aprender a lição de que as comodidades da vida doméstica compensam a submissão ao poder paterna. Como era impossível reverter a punição, Haruo procurou auxílio com um dos membros da comunidade japonesa. Recusado o pedido de abrigo, procurou socorro na família de Pietro, um colega de aula, descendente de imigrantes italianos. Foi acolhido. Era para ser um castigo, mas não foi, ele gostou muito... E aprendeu mais coisas de gaijin, voltou falando coisas em italiano, pedindo para eu aprender a fazer polenta, lembrou, mais tarde, a sua mãe, Shizue.

Sumie, a mãe do narrador, protagoniza um episódio trágico.  Apaixonada por um gaijin – um pecado indesculpável –, precisou escolher entre ser expulsa da comunidade japonesa e a própria felicidade. A mãe e Hanashiro a impedem de fazer uma escolha complicada.  Depois de recusar vários pretendentes, aceitou casar com Ossamu. Um dia, dez anos depois, reencontrou Fernando. Desta vez, não foi possível resistir. Abandonou o marido, os três filhos, e foi viver a história de amor com que sempre sonhara.

Sintomaticamente, são essas duas figuras dramáticas que protagonizam as situações mais significativas da narrativa. A morte simbólica de Sumie, renegada pelos pais, pelo marido e pelos filhos, é complementada pela morte física de Haruo – adulto, perseguido pelo Shindo Renmei, foi assassinado a tiros por dois tokkotais. São momentos em que prevalece a tradição cultural.

Nihonjin, vencedor do Prêmio Benvirá de Literatura de 2011 e do Prêmio Jabuti de 2012, conjugando a aparente simplicidade narrativa com a intensidade emocional, descreve as tensões que surgem com o choque entre culturas, entre gerações familiares e o eterno descompasso promovido pelo tempo. A cena final, quando Noburo  se despede de Hideo (antes de viajar para o Japão, repetindo como dekasegi a história familiar), enfatiza que o desejo do imigrante de voltar para casa muitas vezes somente se concretiza duas ou três gerações depois.  


TRECHO ESCOLHIDO

Às vezes penso em ir vê-la. Eu devo ir vê-la. Talvez não seja essa mulher que eu traduzo em palavras, muito mais criação de um homem que tenta compreender aquela que abandonou o marido e os filhos do que a mãe que conheceu de verdade. Não importa, eu devo ir vê-la. Mas o meu mundo se fez a despeito de seus motivos e suas verdades: sempre há uma partida de futebol na televisão, os amigos que convidam para uma festa, as provas de meus alunos a serem corrigidas, um livro a ser lido, os filhos que querem atenção, a mulher que quer carinho. Mas, um dia, um sábado ou um domingo, acordarei muito cedo e, antes que os outros se levantem, antes que o telefone toque, irei à casa de minha mãe. Tocarei a campainha muitas vezes e ninguém atenderá. Desistirei. Dias depois, um amigo me dirá que assistiu na televisão a uma reportagem sobre uma senhora japonesa que foi encontrada morta em seu apartamento em Pinheiros.



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