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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O ABALO SÍSMICO E OUTROS ABALOS



Quando o livro é difícil de classificar, cabe arriscar. O Abalo Sísmico e Outros Abalos, de Flávio Fernando Cordeiro, assemelha-se a um rio de águas paradas. Na aparente tranquilidade escondem-se perigos. Uma leitura despreocupada indica versos inofensivos – se é que algum poema pode ser chamado de inofensivo. Um ou outro texto chama a atenção, mas... nada muito expressivo. Mesmo assim, há quem arrisque uma releitura, imaginando que não haverá contratempos. Como se estivessem escondidas na vastidão dos sentimentos, aparecem sutilezas, perspicácias, filigranas. Campos minados / num labirinto / de bonecas russas. O leitor teve sorte de escapar impune na primeira leitura. Agora não há mais volta.

esse vazio na alma

mil caminhões não aterram

pontos finais não encerram

nenhum lexotan acalma  


A poesia, metáfora do que há de lírico e subversivo no homem e na mulher, costuma se exibir – sem pudores ou temores – para quem mergulha em seu corpo. Amante exigente, dessas que sentem prazer em extrair a carne e o sangue de suas vítimas, amplia o seu prazer quando descobre que emoções colidem com outras emoções, quando amplia inevitáveis confusões, a bagunça de sempre.

Construir a sensatez como quem destrói paredes.

A poesia é o legado de quem se aventura nessa (des)ventura pouco charmosa que é sobreviver às provações propostas pela existência humana. Os versos escorrem pela correnteza do olhar, dialogando com a arquitetura textual e com o não-dito. Todas as palavras são importantes, assim como todos os espaços em branco. Todos os sons são necessários, assim como o silêncio. 

Estar à beira do abismo e contemplar a beleza desse momento.

deito em silencio litúrgico

de quem guarda atrás da orelha

em segredo

o medo de tanto querer


Os sonhos se abastecem de poesia. Alimentam-se de delírios e fantasias, detalhes, minúcias, pormenores. Abrem e fecham portas. Possibilitam escolhas. Semeiam o medo de errar. Assustador. E tão bom. 

O inesperado se mistura com o esplendor de novas cores, novas tessituras.

atualmente

vivo fase de grande produtividade:

escrevo dez poemas por dia

e já acerto nove

na lata de lixo


A leveza se transforma em alegria. Alquimia espontânea. Elegância. Reflexões sobre as grandes questões do mundo: concisão, revelação, serenidade. Como uma fotografia escondida dentro de um livro – para que possamos encontrá-la muito tempo depois. Surpresa.

todo maconheiro

tem cachorro viciado em maresia

sol a pino, onda a mil

e os dois passeando ao meio dia


Ao mesmo tempo, não há porque esquecer – independente dos golpes de sorte ou da cólera divina – que em algum momento a vida retorna ao escombro. Administrar as porções do cotidiano. Então,

que a poesia

 

seja jogada pro santo

matada no peito

chutada de bico


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