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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

AS PEQUENAS MORTES



A linguagem: instrumento mortal que une o inominável ao ininteligível. Interminável combate para (des)construir o pensamento. A vida é assim, texto-sonho, de nervura tão hebraica, de textura tão anêmona, coisa tão musgo escorrendo entre as palavras que tentam se explicar umas às outras. Voltas e reviravoltas entre o onírico, as contradições e as contravenções, atos de vontade que afastam do convívio humano todas as so(m)bras que levam ao entendimento. Mais cedo ou mais tarde alguém vai divulgar que há um inferno inteirinho na palavra amor – embora poucos entendam que o amor que está presente nas narrativas (escondidos dentro dos livros ou nas lembranças que se formam como sinapses/sinopses do conhecimento) não se aproxima do real. Homens e mulheres, apesar dos avisos, sempre escolhem errado na hora em que o errado não deve ser escolhido. Felipe Werle, narrador de As Pequenas Mortes, compositor de música eletrônica, contrapõe a própria voz com outra, em terceira pessoa, que diz que ele, Felipe, é outro, talvez um alter ego, certamente um homem obcecado pela morte, incapaz de entender que está entrecruzando a própria paranóia com um episódio crucial da história de Goiânia. Nessa biografia, por vezes, pouco mais fiz que formatar, articular, estabelecer fantasmas em texto.

Vinte e poucos anos depois de 13 de setembro de 1987: escrevo para ninguém, para mim mesmo, para tentar organizar o caos. Relato composto por miríades de citações literárias e musicais, retrato acenando para o inequívoco: pose não é posse. A mentira contorna a verdade, como a doce cobertura de um bolo. A imagem supera o sabor. As palavras são minha casa fora de mim.

Césio 137: o mal é um azul que não se vê. Da mesma forma que as amargas contradições da imaginação, constante simulação, escrever é um modo de dar pele à minha carne viva. A plenitude/platitude da vida está sintetizada no inverossímil, no inacreditável, no incrível. A enfermidade corroendo a pele, diluindo os ossos, tornando a substancia humana opaca, expulsando corpo do corpo. Não há como evitar a repugnância que divide em nós o que em nós deveria ser indivisível. Autoficção radioativa.

Esculpido o mármore da perda, resta agonia – quase nada, nada importante,saldo (in)tangível ao (in)significante e quase (im)perceptível, imenso problema com esses corpúsculos brancos, tornados inoperantes no que se deparam com uma física de estrelas desarticulando a carne. Nada mais resta senão, a cada dia, a cada momento, enfrentar, brincar, abraçar o iniludível. São várias as modalidades de violência, e as gradações. Poucos indivíduos conseguem dispor de forças para resistir à dor. Ou ao medo. Desconfiança que essas duas coisas são um mero desdobramento do indivisível. Houve um tempo em que pensei seriamente em suicídio. Aposta lúdica, oposta ao lúcido ácido que surge como consequência do tentar confundir aqueles que são passíveis de ser confundidos. Estratégia perversa para quebrar resistências, o abutre pronto para devorar a carne em decomposição. Células brincando com a morte. O inferno é o reino dos extremos, o resto é a calmaria de uma navegação sonolenta.

Frase com unhas, unhas enterradas na carne macia do coração. Mundano desatino de quem perdeu o direito de discutir com o destino (vulgo estraga momentos, besta-fera do sofrimento). Falta revolução nessa ilusão. Tenho horror a máquinas chafurdando o interior do meu corpo, bisbilhotando minhas vísceras, sem encontrar vestígios do câncer que está lá, desencadeado pelo Césio, mas redigido em minhas escrituras carnais – afinal, sou humano. Não importa a amplitude do luto, toda luta resulta em coração sangrando – como em uma daquelas imagens católicas que estampavam os calendários que não existem mais. Felipe Werle é um ateu não praticante. Despropósito elementar.

A loucura mimetiza um estilhaço da lucidez – esse ruído de dobradiça enferrujada. Vive-se aos fragmentos. Partículas que se despedaçam e envolvem a indestrutível herança genética, lembro-me de meu pai em desrazão, saraivando impropério. Ninguém consegue manter a sanidade quando o que restou de humano no humano foi mineralizado pela morte em pó. Somente as lembranças podem suavizar o inapropriado, salvar o improvável. A verdade é que todo Apocalipse é pessoal. Privado. Intransferível. Cada um com sua morte, do mesmo modo que cada um com sua vida.

Ana terminou comigo, pelo menos por uns dias, é um dos nossos esportes favoritos. Anestesiar saudades nas reentrâncias de Camila. Com trilha sonora do Joy Division, lembrando Bataille (A História do Olho), realizar no corpo de Camila tudo o que está impedido no corpo de Ana. A felicidade de um homem como eu está no entre as pernas. Romper barreiras e mergulhar na iniquidade e ressurgir como peregrino religioso. As mulheres com que me destruo são referências, sobretudo Ana. Para os franceses, o orgasmo equivale a uma pequena morte – que, quando somado com outros orgasmos, constituem um simulacro de felicidade.

 Nós dois na sala, no sofá, não é muito original, mas os dois no sofá, prefaciando o conhecimento bíblico entre um homem e uma mulher. Espelhando/espalhando sacanagens, o prazer  penetra nos (in)cômodos da casa. O gozo como dádiva e maldição divina, sem descobrir quais sementes se misturam com as sutilezas semânticas, o homem e a mulher plantando sonhos no solo que constroem entre gemidos e gozo. Amor, cansaço, enfermidade: sinônimos do desespero. Não se deve olhar para trás, as estátuas de sal avisam que a paixão e o perigo são irmãos. Univitelinos. Idênticos.Porém diferentes, como convém aos que se perdem nos descaminhos que conduzem ao velocino de Césio. Mitologias do contemporâneo.


Pensa em Ana, nas trepadas, pensa muito nos sons das trepadas, os gemidos descompassados e de dentro para dentro, a carne molhada que se mistura a pensamentos cancerígenos. A alegria sexual comprova que a vida não termina em final feliz. A obsessão se multiplica na proporção aleatória da metástase. Ruínas são parceiras constantes dos antidepressivos. Do niilismo que acompanha as dores causadas pelas ausências afetivas. Fui para a Sibéria, só pelo prazer da distância, escreveu Ana, quando abandonou Felipe.  

As Pequenas Mortes, narrativa intensa sem ser extensa, unindo o inexequível com o inestimável, sem cessar de escrever, até que me esvazie de palavras, até que não me identifique mais com palavra alguma. Texto construído como caixa de surpresas. Três partes distintas, dissonantes, distantes. Elegia p(r)o(f)ética da doença mortal que corroeu Goiânia. Sinfonia da destruição. Uma form(ul)a de elevar os excessos da linguagem. Com a mesma intensidade, aplaudir a queda.

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