Eu que nunca morri de amores por aquele irmão, eu
que o teria trocado por um irmão alemão sem pestanejar, passei a me inquietar
com a ameaça de ficar sem irmão nenhum.
A fraternidade reinventa a barbárie. Em
famílias com dois ou mais filhos, cada um deles está sempre preparado para
rachar o crânio do outro – e sem o mínimo arrependimento. Diariamente, transformam
a cena doméstica em campo de batalha, onde raramente são superadas as disputas
por ninharias, as cenas de ciúmes, os ressentimentos pela ausência de amor da
mãe ou pela atenção do pai. Esse tipo de situação ocorre em consequência da leniência
dos pais, que consideram a “marca de Caim” como um mito ficcional. Sem perceber
que cada um dos filhos possui demandas e necessidades diferentes – e que
precisam ser atendidas de forma específica –, propõem uma política familiar
unificada. Sob a alegação de que todos devem ser tratados de igual maneira
instituem uma “democracia” artificial.
Esse procedimento é desmentido pela prática diária e, de uma forma ou de outra, resulta em incentivo aos conflitos e confrontos psicológicos e físicos. A sobrevivência
familiar está alicerçada em um jogo intermitente entre chantagens e concessões
de favores. E isso causa uma série de problemas que o discurso ameno e hipócrita dos pais não consegue amortizar. Os conflitos familiares somente obtém trégua em casos de interesses
circunstanciais, estratégias de sobrevivência ou ameaças externas (situação em que
a união familiar é superior ao ódio fraterno).
No entrecruzamento entre o real e a
ficção, Francisco (Chico) Buarque de Hollanda escreveu um romance estranho, O
Irmão Alemão. Ao manusear um dos livros da biblioteca do pai, o narrador (alter ego de Chico) encontra uma correspondência datada de antes da II Guerra Mundial. Diante da revelação obtida pela leitura da carta, começa a somar indícios até ter uma imagem nebulosa sobre a
projeção fraterna que está escondida nas lacunas familiares.
Fruto de uma relação amorosa do
historiador Sergio Buarque de Hollanda, quando morou na Alemanha, um pouco
antes da ascensão nazista, Horst Günther (batizado como Sergio Ernest) veio ao
mundo em tempos sombrios. Quando Sergio pai precisou voltar ao Brasil, o filho ainda
não havia nascido. Alguns anos depois, ao saber que havia deixado um herdeiro
na Europa, mostrou disposição – financeira – de auxiliar a mãe do menino. A
boa vontade esbarra em diversos impedimentos, resultantes da situação política
europeia. Depois do fim da II Guerra Mundial não houve contato entre as partes. A
história se perdeu nas folhas amareladas da correspondência esquecida dentre as
páginas de alguns livros.
Encontrar o irmão perdido se torna uma
obsessão para o narrador de O Irmão Alemão. Mas, de forma estranha,
incompreensível, o romance não está exatamente centrado na vida do primogênito
de Sergio Buarque de Hollanda. Dependendo do leitor é possível entender as 226
páginas (mais anexos) do romance como uma descrição errática, sem muito
sentido, exceto ligar pontas soltas de fios desencontrados. Também podem ser
vistas como uma disputa dissimulada pela progenitura ou como mero pretexto para
cutucar uma ferida familiar que, depois de tantos anos, ainda não cicatrizou.
O resto da história não passa de um
imenso blábláblá, desses que misturam picuinhas familiares com discussões
inócuas sobre política e história. Tudo é descrito de forma muito rápida,
superficial, sem se ater ao que é importante – inclusive nos momentos em que
denuncia o arbítrio dos governos militares. Aos olhos de algum leitor mais
atento, o livro não passa de um instrumento de compensação pelo “erro paterno”.
Encontrar o irmão perdido é uma forma simbólica de restabelecer o vínculo
familiar, de resgatar para o rebanho a “ovelha perdida”, de propor a
domesticação dos instintos mais primitivos. Obviamente, o narrador não assume
esse propósito. Para mascarar os sentimentos, adota uma linguagem seca, isenta
de emoções. Quer parecer que seu objetivo é “apenas” descrever os fatos, sem
tomar partido a favor ou contra os acontecimentos. Não convence.
O irmão europeu foi um famoso
apresentador de televisão na Alemanha Oriental. Talvez tenha combatido na
guerra, como soldado do exército alemão. Quando o narrador encontra elementos
suficientes para confirmar o que até então era apenas suspeita, constata que o
primogênito morreu aos 51 anos, câncer no pulmão. Embora não o diga – e nem
poderia dizer – percebe-se que ficou aliviado pelo destino o haver poupado do desconforto
de olhar para o rosto do irmão. Não precisou conversar com ele e tentar
justificar porque teve um pai e o Outro, não.
Depois que o leitor ultrapassa a última página de O Irmão Alemão, sobra o sentimento de que o romance foi escrito apenas para
confirmar que o primogênito da família Buarque de Hollanda está morto. E
enterrado.
P.S.: Quem tiver interesse na gênese de O Irmão Alemão deve ler O Irmão Brasileiro, reportagem escrita por Fernando
de Barros e Silva e publicada na revista Piauí (nº 100, janeiro de 2015).
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