Conta a lenda que, em 1839, na cidade de
Laguna, litoral de Santa Catarina, Giuseppe (batizado Joseph Marie) Garibaldi perdeu o controle das
questões objetivas. Diante de Ana Maria de Jesus Ribeiro da Silva, a Anita, 18
anos, de ascendência portuguesa e índia, cabelos escuros, seios fartos, ele decidiu
o futuro do casal com uma frase, Tu devi esser mia (Você deve ser minha). A parte divertida desse episódio é que ele falava um pouco de português, não muito, o suficiente para
resolver as questões amorosas, além de muitos outros problemas. Por algum motivo que os
historiadores nunca conseguiram explicar, preferiu utilizar o idioma que
aprendeu na infância. Será que um homem (ou uma mulher), ao escolher a mulher
(ou o homem) com quem vai compartilhar dias e noites, humores e gemidos, copos
de água e taças de vinho, necessita se expressar como se estivesse em casa?
Anita Garibaldi |
O encontro entre Garibaldi e Anita,
momento clássico do romantismo histórico, teve que superar um pequeno obstáculo.
Ela era casada. Com um sapateiro. De qualquer forma, essa dificuldade perdeu a
importância rapidamente. A atração mútua falou mais alto. Tanto que logo estavam vivendo sob o mesmo teto. Casaram três anos depois, no Uruguai, depois
que alguém lhes informou que o primeiro marido de Anita havia morrido. Estiveram
juntos dez anos, combateram em dois continentes e tiveram quatro filhos. As
surpresas da vida são frequentemente os clichês da literatura, lembra o
narrador de Carcassonne, um conto do inglês Julian Barnes e que integra o
livro Pulso.
O conto, que não preza pela linearidade,
aborda diversos aspectos da indeterminação que constitui o conceito de “gosto”.
No entanto, o narrador alerta que (...) a palavra – talvez por causa de sua
grande abrangência – é enganosa. E complementa o comentário, fazendo um
esforço de linguagem, mistura de observações triviais e filosofia, “Gosto”
pode implicar uma reflexão calma; enquanto seus derivativos – bom gosto, com
gosto, mau gosto, sem gosto – direcionam-nos a um mundo de diferenciações
minúsculas, de esnobismos, valores sociais e acessórios de cama, mesa e banho.
O verdadeiro gosto, o gosto essencial, é muito mais instintivo e irrefletido. Esse circunlóquio, próximo do torcer e retorcer a linha de pensamento que quer
defender, tem como meta provar – racionalmente – que Apaixonar-se
é a expressão de gosto mais violenta que conhecemos. É uma tese tão duvidosa quanto qualquer outra.
A cidadela de Carcassonne, departamento de Aude, na região de Languedoque-Rossilhão, França. |
Apesar de haver quem argumente contra, e
são muitos, o conto sugere – com outras palavras – que o amor, a paixão, o
desejo, o tesão, a excitação ou sabe-se lá que outro nome utilizado para caracterizar
os diversos níveis de prazer que advém daqueles instantes em que o coração
começa a pulsar descompasado, em que o corpo começa a arder, resulta na impossibilidade de controlar
as emoções. O princípio básico quer estabelecer que os relacionamentos afetivos são
derivados de um valor absoluto, que não pode ser questionado. O narrador do
conto chama a esse momento de “Coup de foudre”, a flechada do raio e o
estampido do trovão do amor. Enfim, diante de Eros (ou do Cupido), descobrir
que é possível ter prazer com certas coisas que podem ser realizadas com certas
partes do corpo de outra pessoa modifica comportamentos. Aproxima os indivíduos
da (in)felicidade.
A famosa cidade histórica francesa de Carcassonne
surge, pela primeira vez no conto, através de uma citação literária. Eu só
queria me casar com ela como algumas pessoas desejam ir a Carcassonne, afirma
Dowell, o narrador de O Bom Soldado, de Ford Madox Ford. O conto de Julian Barnes não relata se o casal Garibaldi lá esteve. Talvez isso não importe. Talvez Carcassonne seja apenas um desses lugares mágicos, que realizam os sonhos das pessoas apaixonadas e que transcendem aqueles que gravitam ao seu redor. Talvez.
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