O mundo se [divide] entre os de coração
aflito e os de maldade extrema, afirma o narrador de Cara de Boneca, um dos
vinte e sete contos que compõem Jeito de Matar Lagartas, de Antonio Carlos
Viana.
Manejando um universo literário centralizado
na tragédia, Viana coloca em cena um peculiar conjunto de personagens – quase
todos com dificuldades econômicas. Seguindo os passos do escritor russo Anton Pavlovitch
Tchekhov – mestre na exposição das miudezas sociais –, exibe as inúmeras
variações do horror sem o mínimo escrúpulo.
Jeito de Matar Lagartas se divide
entre relatos da infância e da velhice. O olhar da criança, próxima da
adolescência, misturando ingenuidade e esperteza em doses desproporcionais, registra
a decomposição do corpo e do espírito dos adultos. Ao mesmo tempo, reafirma que
a crueldade – gratuita – é a moeda corrente nas trocas simbólicas que separam o
gozo e a dor. O olhar dos velhos, indivíduos que ultrapassaram inúmeras dificuldades
e que, de alguma maneira, se tornaram sobreviventes de suas (nem sempre
corretas) escolhas, confirma que a solidão e as carências afetivas não diminuíram
com o passar dos anos e a consequente proximidade da morte. No mundo suburbano,
repleto de ausências e misérias, a esperança de dias melhores desaparece diante
do poder da perversidade.
No primeiro conto do livro, Muralha da
China, um acidente automobilístico resulta em situação bastante tensa e que está
concentrada na dificuldade de contar para a vizinha que o marido e o filho
morreram. O registro da agonia não perde intensidade com a soma dos parágrafos.
Ao contrário, acrescenta camadas de suplício ao drama.
O aprendizado (emocional, sexual) está
presente no conto homônimo ao título do livro. Enquanto as crianças (Laércio,
Lídia, o narrador), misturando brincadeiras e malícia, esmagam as lagartas que
estão infestando os cajueiros do sítio de Marluce, a tia do narrador, outra
história se desenvolve longe do olhar do leitor. Nas frases finais, o interdito
sai das sombras e invade a imaginação, Quando abrimos a porta, tomamos o maior
susto: tia Marluce estabanada debaixo do corpo de seu Laurentino, se
contorcendo que nem uma lagarta.
Como Não há histórias de amor sem
cuecas e calcinhas, as mulheres que deixaram para trás histórias de fracassos
afetivos estão presentes em diversos momentos. Roteiro da Solidão, Nena de
Cabelos Soltos, Paixão no Delta, Três Lembranças, pronunciam que a
amargura e a solidão muitas vezes se transformam em substituto para o carinho.
Viver com outra pessoa prenuncia o instante em que o abandono assume o
controle da vida de quem acreditou no amor.
As ações sexuais – sempre desejadas;
muitas vezes, inalcançáveis – revelam o reencontro com as delícias do prazer,
como em Florais, onde a narradora, que ficara triste porque fizera com Alain
Delon o que jamais havia feito com o marido, perde a discrição que sempre a
caracterizara e confessa o inconfessável, só mesmo a Fúcsia da Califórnia para
lhe dar aquela coragem de dizer que ainda havia um território em seu corpo que
nunca fora explorado. A vida amorosa também espelha fracassos, como em Enquanto Espero, Madame Viola Faz Escova Progressiva, Dona Katucha, Gedeão, Maria Montez.
O olhar masculino sobre o abandono
afetivo aparece – de forma contundente – em Amarelo Klint (relato sobre os
elementos transversos que corrompem a amizade), Cara de Boneca (exemplo
eloquente da banalidade do mal), Cozinha Benguela (momento de
incomunicabilidade amorosa) e As Margens Férteis do Nilo (a paixão pela
professora colegial reinventada trinta anos depois).
Algumas cenas conseguem sintetizar a
vida repleta de dificuldades, de perdas. É o caso do mundo visto pelos olhos do
amigo da menina paraplégica (Balé), do narrador inominado que relata um drama familiar (Professor Locarno) e do menino, em Salviano, que, diante
da perda de seu animal de estimação, desabafa, Felizmente consegui segurar o
choro. “Assim é a vida”, pensei pela primeira vez, enquanto meu pai molhava o
dedo na língua para contar melhor o dinheiro.
Em Reencontro, a reflexão política,
quase que uma desforra pelo sofrimento sofrido quarenta anos antes, se mostra
inócua. Os problemas neurológicos do Monsenhor o estão transformando em um
vegetal, incapaz de perceber o quão danosas foram as ações colaboracionistas da
igreja com a tortura política.
As melhores histórias, Lucy in The Sky, A Caixa e Missa de Sétimo Dia, mostram que a tristeza não é impedimento
para momentos de grandiosidade. Na primeira, o amor surge quando parecia estar perdido
para sempre. Na segunda, uma caixa, enviada por Sedex para Annemarie, pode
destruir o seu casamento com Duda. Na última, celebrar o amor perdido implica
em encontrar resposta para uma pergunta desconcertante, Mas quem já viu coroa
de flores em porta de sex shop?
Atento às ações de suas personagens, Antonio
Carlos Viana utiliza da elegância das frases simples, dessas que adquirem
substância através de elementos mínimos, para se afastar do sentimentalismo. Sem
aliviar as tensões, sem amenizar a brutalidade, o corte afiado da lâmina
literária revela a beleza do inumano.
Antonio Carlos Viana é o autor de Brincar de Manja (1974), Em Pleno Castigo (1981), O Meio do Mundo (1993),
livros que foram reunidos pelo Paulo Henriques Brito em O Meio do Mundo e
Outros Contos (1999). Depois publicou Aberto Está o Céu (2004), Cine Privê (2009) e Jeito de Matar Lagartas (2015).
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