Em 2010, Alan Clay, 54 anos, consultor
empresarial quase falido, precisou viajar de Boston, em Estados Unidos, para Jidá,
na Arábia Saudita. Foi contratado para, na companhia de dois engenheiros (Brad
e Cayley) e a diretora de comercialização (Rachel) da Reliant, a maior
supridora de tecnologia de informação do mundo, apresentar uma proposta de
negócios ao rei Abdullah. O ápice do evento, onde haverá a exposição de
vários produtos de última geração tecnológica, se concentra na demonstração de um holograma (que foi produzido
para distrair e entreter).
A situação corporativa, bastante comum
no mundo financeiro, se transforma em uma versão (com tons
a-pós-a-moderna-idade) de Esperando Godot (Samuel Beckett) ou do filme Encontros e Desencontros (Lost in Translation. Dir. Sophia Coppola, 2003).
Sua Majestade está sempre em viagem, sempre distante, ninguém consegue dizer
quando aparecerá na Cidade Econômica Rei Abdullah (CERA), um empreendimento
megalomaníaco que está sendo construído nas proximidades de Jidá. Enquanto a
equipe estadunidense aguarda por algo que talvez não se realize, não há
condições para repouso ou tranquilidade. No mundo contemporâneo, qualquer
desperdício de tempo causa angústia. Em paralelo, o deslocamento (afetivo,
cultural, geográfico) oprime. A Arábia Saudita supera a metáfora óbvia
(deserto) e revela, através do calor e da areia, o mal-estar – reconfigurado
como impotência e sofrimento. A espera e o desespero parecem ecoar com mais
força do que o necessário. Vários desses elementos narrativos poderiam ter sido retirados
de clássicos como O Processo ou O Castelo (Franz Kafka).
Dave Eggers |
Alan Clay, protagonista do romance Um
Holograma para o Rei, de Dave Eggers, é um personagem simpático para o leitor.
E para os outros personagens (exceto Brad, de quem ele não gosta). Sem muitas
dificuldades, estabelece uma relação de amizade com Yousef – uma espécie de
playboy árabe que trabalha como motorista para turistas ocidentais. As mulheres
têm dificuldades para resistirem ao seu charme. Parte dessa empatia serve de
máscara para esconder as suas múltiplas deficiências psicológicas. Por exemplo,
ele nutre um imenso ressentimento pela ex-esposa, Ruby. E que é externado nas
inúmeras cartas que escreve para Kit. O mais estranho, nessa faceta de pai
amoroso, é que esses textos nunca são enviados para a filha. O efeito
terapêutico compensa a opção constrangedora.
Enquanto o soberano saudita está em lugar
indefinido, Alan ocupa o tempo com diversas atividades. Tenta falar com as
autoridades locais – para providenciar o básico, ar condicionado, sinal de
Internet, comida. Vai a uma festa na embaixada dinamarquesa. Preocupado com um caroço
no pescoço, submete-se a um procedimento cirúrgico para retirá-lo. Viaja para o
interior com Yousef, onde participa de uma caçada noturna e quase mata um
adolescente. Namora Hanne e Zahra Haken. E, principalmente, apesar da proibição
religiosa que caracteriza os países muçulmanos, consome doses industriais de
bebidas alcoólicas. Todas essas atividades sinalizam para o tédio, para a
ineficácia de quaisquer esforços que possam ser feitos para resolver o impasse
em que os estadunidenses foram aprisionados. Contraditoriamente, a Arábia
Saudita também pode ser entendida como uma imensa redoma de vidro que isola Alan
dos problemas “reais” (as mensalidades da universidade da filha, os fracassos
da vida sentimental e profissional). Exilado – talvez como uma forma de punição mística
por seus múltiplos erros –, Alan não sabe se quer voltar à civilização ou
permanecer entre os bárbaros. Em qualquer uma das alternativas, o inferno o
aguarda.
Uma questão importante, que aparece de forma intermitente, é a rememoração de um incidente ocorrido com Charlie Fallon, vizinho
de Alan em Boston. Ele morreu afogado em um lago. Provavelmente se suicidou. Não
há uma explicação convincente para a tragédia. O que incomoda Alan é a
possibilidade da morte de Charlie se assemelhar com um holograma – em
determinado momento a imagem desaparece, sem deixar traços, sem deixar
lembranças. Como se não tivesse existido.
Um Holograma para o Rei, escrito com
agilidade e competência, relata com boas doses de humor o desenraizamento
cultural. Mas, ao mesmo tempo, reflete a inquietação que corrói a existência
humana. Em outras palavras, é um livro agradável, desses que são capazes de
produzir reflexões profundas através de exemplos triviais.
PS: Hollywood produziu uma versão de Um Holograma para o Rei – que recebeu no Brasil um título risível: Negócio das Arábias (A Hologram for the King. Dir. Tom Tykwer, 2016). A presença de Tom Hanks no elenco não melhora o filme. Embora o roteiro se mantenha mais ou menos fiel ao texto original, os diversos desvios produzidos pela adaptação da linguagem literária para a cinematográfica, inclusive o final, distorcem parte do tom desesperançado que caracteriza o livro.
PS: Hollywood produziu uma versão de Um Holograma para o Rei – que recebeu no Brasil um título risível: Negócio das Arábias (A Hologram for the King. Dir. Tom Tykwer, 2016). A presença de Tom Hanks no elenco não melhora o filme. Embora o roteiro se mantenha mais ou menos fiel ao texto original, os diversos desvios produzidos pela adaptação da linguagem literária para a cinematográfica, inclusive o final, distorcem parte do tom desesperançado que caracteriza o livro.
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