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terça-feira, 11 de agosto de 2015

UM HOLOGRAMA PARA O REI

Em 2010, Alan Clay, 54 anos, consultor empresarial quase falido, precisou viajar de Boston, em Estados Unidos, para Jidá, na Arábia Saudita. Foi contratado para, na companhia de dois engenheiros (Brad e Cayley) e a diretora de comercialização (Rachel) da Reliant, a maior supridora de tecnologia de informação do mundo, apresentar uma proposta de negócios ao rei Abdullah. O ápice do evento, onde haverá a exposição de vários produtos de última geração tecnológica, se concentra na demonstração de um holograma (que foi produzido para distrair e entreter).

A situação corporativa, bastante comum no mundo financeiro, se transforma em uma versão (com tons a-pós-a-moderna-idade) de Esperando Godot (Samuel Beckett) ou do filme Encontros e Desencontros (Lost in Translation. Dir. Sophia Coppola, 2003). Sua Majestade está sempre em viagem, sempre distante, ninguém consegue dizer quando aparecerá na Cidade Econômica Rei Abdullah (CERA), um empreendimento megalomaníaco que está sendo construído nas proximidades de Jidá. Enquanto a equipe estadunidense aguarda por algo que talvez não se realize, não há condições para repouso ou tranquilidade. No mundo contemporâneo, qualquer desperdício de tempo causa angústia. Em paralelo, o deslocamento (afetivo, cultural, geográfico) oprime. A Arábia Saudita supera a metáfora óbvia (deserto) e revela, através do calor e da areia, o mal-estar – reconfigurado como impotência e sofrimento. A espera e o desespero parecem ecoar com mais força do que o necessário. Vários desses elementos narrativos poderiam ter sido retirados de clássicos como O Processo ou O Castelo (Franz Kafka).

Dave Eggers
Alan Clay, protagonista do romance Um Holograma para o Rei, de Dave Eggers, é um personagem simpático para o leitor. E para os outros personagens (exceto Brad, de quem ele não gosta). Sem muitas dificuldades, estabelece uma relação de amizade com Yousef – uma espécie de playboy árabe que trabalha como motorista para turistas ocidentais. As mulheres têm dificuldades para resistirem ao seu charme. Parte dessa empatia serve de máscara para esconder as suas múltiplas deficiências psicológicas. Por exemplo, ele nutre um imenso ressentimento pela ex-esposa, Ruby. E que é externado nas inúmeras cartas que escreve para Kit. O mais estranho, nessa faceta de pai amoroso, é que esses textos nunca são enviados para a filha. O efeito terapêutico compensa a opção constrangedora.

Enquanto o soberano saudita está em lugar indefinido, Alan ocupa o tempo com diversas atividades. Tenta falar com as autoridades locais – para providenciar o básico, ar condicionado, sinal de Internet, comida. Vai a uma festa na embaixada dinamarquesa. Preocupado com um caroço no pescoço, submete-se a um procedimento cirúrgico para retirá-lo. Viaja para o interior com Yousef, onde participa de uma caçada noturna e quase mata um adolescente. Namora Hanne e Zahra Haken. E, principalmente, apesar da proibição religiosa que caracteriza os países muçulmanos, consome doses industriais de bebidas alcoólicas. Todas essas atividades sinalizam para o tédio, para a ineficácia de quaisquer esforços que possam ser feitos para resolver o impasse em que os estadunidenses foram aprisionados. Contraditoriamente, a Arábia Saudita também pode ser entendida como uma imensa redoma de vidro que isola Alan dos problemas “reais” (as mensalidades da universidade da filha, os fracassos da vida sentimental e profissional). Exilado – talvez como uma forma de punição mística por seus múltiplos erros –, Alan não sabe se quer voltar à civilização ou permanecer entre os bárbaros. Em qualquer uma das alternativas, o inferno o aguarda.

Uma questão importante, que aparece de forma intermitente, é a rememoração de um incidente ocorrido com Charlie Fallon, vizinho de Alan em Boston. Ele morreu afogado em um lago. Provavelmente se suicidou. Não há uma explicação convincente para a tragédia. O que incomoda Alan é a possibilidade da morte de Charlie se assemelhar com um holograma – em determinado momento a imagem desaparece, sem deixar traços, sem deixar lembranças. Como se não tivesse existido.  


Um Holograma para o Rei, escrito com agilidade e competência, relata com boas doses de humor o desenraizamento cultural. Mas, ao mesmo tempo, reflete a inquietação que corrói a existência humana. Em outras palavras, é um livro agradável, desses que são capazes de produzir reflexões profundas através de exemplos triviais.  

PS: Hollywood produziu uma versão de Um Holograma para o Rei  que recebeu no Brasil um título risível: Negócio das Arábias (A Hologram for the King. Dir. Tom Tykwer, 2016). A presença de Tom Hanks no elenco não melhora o filme. Embora o roteiro se mantenha mais ou menos fiel ao texto original, os diversos desvios produzidos pela adaptação da linguagem literária para a cinematográfica, inclusive o final, distorcem parte do tom desesperançado que caracteriza o livro. 

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