Todo reencontro implica em algum tipo
de espanto.
Não me lembrava do quanto é engraçado o
enredo de Nosso Homem em Havana (Our Man in Havana), de Graham Greene. A névoa produzida
por uma leitura feita a mais de trinta anos indicava algo impreciso, algum episódio
pitoresco de espionagem ambientado em uma Cuba pressionada pelos horrores da Guerra Fria. No intervalo, parece-me que havia espaço para as atrocidades do
governo de Fulgêncio Batista e a exploração dos cassinos e do lenocínio pelos
estadunidenses. Os clichês típicos da literatura de época.
Nada disso. Quer dizer, há um pouco
desses lugares comuns dos anos 50/60 do século XX, mas a espinha dorsal do livro está
centralizada em uma estranha comédia de erros. Em 1958, no calor abrasador de
Havana, o inglês James (Jim) Wormold, depois de ser abandonado pela esposa, leva
a vida em ponto morto. Sem grandes perspectivas, sem obter sucesso como
comerciante de aspiradores de pó, se contentando em aliviar as complicações do
dia a dia com algumas doses de uísque na companhia do médico Hasselbacher, ele tenta,
na medida do possível, dar uma educação de qualidade para a filha, Milly. E
esse é o seu grande problema: Milly se tornou uma bela mulher de 17 anos. E
que, digamos assim, está em perigo: o capitão Segura, um conhecido torturador
do regime ditatorial, olha para a menina com interesses pouco civilizados.
Sabe-se lá porque razões, se é que elas
existem, um dia Wormold foi contatado por um agente do serviço secreto inglês (Military
Intelligence, section 6; também conhecido como MI-6). Para sustentar um dos
caprichos da filha (ter um cavalo), ele aceita “recrutar” uma rede de espionagem
em favor dos ingleses. Seguem-se incontáveis trapalhadas, onde a ficção invade
a política e a política perde substância em favor do nonsense e do patético.
O fato significativo é que os ingleses
acreditam na farsa montada por Wormold – e nos relatórios que recebem. A
pantomima se desenvolve até certo ponto. Em Londres, alguém percebe que a
situação está se tornando complexa, que há necessidade de ter mais atenção com os
acontecimentos que ali (não) estão se desenvolvendo, e resolve mandar alguns agentes
para auxiliarem Wormold. Isso desencadeia novas confusões.
O absurdo se torna mais absurdo quando algumas
das situações inventadas por Wormold começam a se mostrar verdadeiras. Mortes,
tentativas de assassinato, queda de avião – o mundo se despedaça. E a paranoia
se torna uma companheira constante. Principalmente depois da morte de
Hasselbacher.
Quase ao final ocorre a melhor de todas
as cenas. O capitão Segura, um exímio jogador de damas, costuma ganhar dezenas
de partidas de Wormold. Fazendo valer o
horrível trocadilho possível com o seu sobrenome, worm old, Jim elabora uma
divertida cilada ao policial: lança desafio para mais uma sessão de jogos. Mas,
há uma sutileza, as 24 peças foram substituídas por miniaturas de garrafas de
uísque (de um lado, bourbons; do outro, scotches). Para cada peça retirada do
tabuleiro, o jogador precisa beber o seu conteúdo. Desta forma, além de jogar
com precisão, torna-se necessário a resistência alcoólica. O inglês perde no
tabuleiro, mas ganha o jogo: o capitão Segura, em coma alcoólica, beija a lona.
De posse de um documento importante, Wormold e Milly escapam do atoleiro e, em
Londres, refazem a vida.
Henry Graham Greene (1904 - 1991) |
O espaço ficcional de Juan Pedro
Gutiérrez difere muito do de Graham Greene. Contrastando com a moral católica
do inglês, o cubano habita um mundo onde a violência e a pornografia são
elementos indissociáveis da vida.
Ao se hospedar no hotel, em Havana, o
jornalista George Greene (GG) é confundido com o celebre escritor – mas nada faz
para desfazer o equívoco.
Em uma boate de sexo explicito, GG se
apaixona por um dos atores, o Super-homem, que fora do palco, peruca e roupas
femininas, adotou o nome de Caridad.
Poderia ser apenas mais uma dessas histórias estranhas de opostos que se atraem, se não houvesse um cadáver entre eles. Resultado: polícia e notícia em jornal. As manchetes proclamam ao mundo que Graham Greene, acusado de homicídio, havia sido preso na companhia de uma travesti.
Poderia ser apenas mais uma dessas histórias estranhas de opostos que se atraem, se não houvesse um cadáver entre eles. Resultado: polícia e notícia em jornal. As manchetes proclamam ao mundo que Graham Greene, acusado de homicídio, havia sido preso na companhia de uma travesti.
Evidentemente, o verdadeiro Graham
Greene estava longe. Morando na ilha de Capri, o inglês tinha acabado de
escrever O Americano Tranquilo (The Quiet American, que foi publicado em 1955). Esse romance é protagonizado por um complexo triangulo amoroso durante a Guerra da
Indochina. Em paralelo, há debates sobre a política intervencionista dos
estadunidenses e o conceito de democracia.
Por razões que somente a
irracionalidade explica e contrariando o conselho de seu agente literário,
Graham Greene, ao saber das notícias, viaja para Havana. A possibilidade de se encontrar com o seu
duplo é mais estimulante do que ficar esperando que a situação seja
esclarecida.
O que se segue é muito bizarro. Há
prostitutas e personagens folclóricos, há os laços de amizade e uma quadrilha de gangsters,
há fascistas e a KGB. Diversos personagens do submundo de Havana também
participam do enredo. Tudo fica nebuloso. O enredo se torna um grande pastiche dos
romances de espionagem na medida em que surgem complicações, ameaças e
conspirações por todos os lados.
O duplo, figura patética que encontra a
satisfação sexual e amorosa nos braços de Caridad, nada mais é que um pretexto
para atrair a presença do personagem Graham Greene para Havana. Uma vez que
isso se concretiza, ele não se faz mais necessário, surgindo em cena apenas
mais uma vez. Resta ao escritor-personagem tentar sobreviver em uma selva de
mal-entendidos, equívocos e desacertos. Não resta motivo para ter saudades
quando ele, finalmente, consegue deixar Havana.
Ler os dois livros em sequência
significa entender o quão largo é o horizonte da literatura. O contraste entre
duas narrativas tão diferentes em linguagem e estilo literário produz
estranhamento. E, de uma forma ou de outra, modifica o leitor (que, entre um livro
e outro, procura por convergências, por afastamentos, por algum tipo de
alivio). Dentro dessa espécie de curto-circuito não há salvação.
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