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segunda-feira, 10 de setembro de 2018

GRAHAM GRENE PASSEANDO POR HAVANA


Todo reencontro implica em algum tipo de espanto.

Não me lembrava do quanto é engraçado o enredo de Nosso Homem em Havana (Our Man in Havana), de Graham Greene. A névoa produzida por uma leitura feita a mais de trinta anos indicava algo impreciso, algum episódio pitoresco de espionagem ambientado em uma Cuba pressionada pelos horrores da Guerra Fria. No intervalo, parece-me que havia espaço para as atrocidades do governo de Fulgêncio Batista e a exploração dos cassinos e do lenocínio pelos estadunidenses. Os clichês típicos da literatura de época.


Nada disso. Quer dizer, há um pouco desses lugares comuns dos anos 50/60 do século XX, mas a espinha dorsal do livro está centralizada em uma estranha comédia de erros. Em 1958, no calor abrasador de Havana, o inglês James (Jim) Wormold, depois de ser abandonado pela esposa, leva a vida em ponto morto. Sem grandes perspectivas, sem obter sucesso como comerciante de aspiradores de pó, se contentando em aliviar as complicações do dia a dia com algumas doses de uísque na companhia do médico Hasselbacher, ele tenta, na medida do possível, dar uma educação de qualidade para a filha, Milly. E esse é o seu grande problema: Milly se tornou uma bela mulher de 17 anos. E que, digamos assim, está em perigo: o capitão Segura, um conhecido torturador do regime ditatorial, olha para a menina com interesses pouco civilizados.

Sabe-se lá porque razões, se é que elas existem, um dia Wormold foi contatado por um agente do serviço secreto inglês (Military Intelligence, section 6; também conhecido como MI-6). Para sustentar um dos caprichos da filha (ter um cavalo), ele aceita “recrutar” uma rede de espionagem em favor dos ingleses. Seguem-se incontáveis trapalhadas, onde a ficção invade a política e a política perde substância em favor do nonsense e do patético.  

O fato significativo é que os ingleses acreditam na farsa montada por Wormold – e nos relatórios que recebem. A pantomima se desenvolve até certo ponto. Em Londres, alguém percebe que a situação está se tornando complexa, que há necessidade de ter mais atenção com os acontecimentos que ali (não) estão se desenvolvendo, e resolve mandar alguns agentes para auxiliarem Wormold. Isso desencadeia novas confusões.

O absurdo se torna mais absurdo quando algumas das situações inventadas por Wormold começam a se mostrar verdadeiras. Mortes, tentativas de assassinato, queda de avião – o mundo se despedaça. E a paranoia se torna uma companheira constante. Principalmente depois da morte de Hasselbacher.

 Quase ao final ocorre a melhor de todas as cenas. O capitão Segura, um exímio jogador de damas, costuma ganhar dezenas de partidas de Wormold.  Fazendo valer o horrível trocadilho possível com o seu sobrenome, worm old, Jim elabora uma divertida cilada ao policial: lança desafio para mais uma sessão de jogos. Mas, há uma sutileza, as 24 peças foram substituídas por miniaturas de garrafas de uísque (de um lado, bourbons; do outro, scotches). Para cada peça retirada do tabuleiro, o jogador precisa beber o seu conteúdo. Desta forma, além de jogar com precisão, torna-se necessário a resistência alcoólica. O inglês perde no tabuleiro, mas ganha o jogo: o capitão Segura, em coma alcoólica, beija a lona. De posse de um documento importante, Wormold e Milly escapam do atoleiro e, em Londres, refazem a vida.
Henry Graham Greene (1904 - 1991)
 A literatura tem características muito peculiares. O diálogo entre livros escritos em diferentes épocas talvez seja uma delas. O cubano Pedro Juan Gutiérrez resolveu brincar com Nosso Homem em Havana e escreveu uma nova versão para o tema: Nosso GG em Havana.

O espaço ficcional de Juan Pedro Gutiérrez difere muito do de Graham Greene. Contrastando com a moral católica do inglês, o cubano habita um mundo onde a violência e a pornografia são elementos indissociáveis da vida.

Ao se hospedar no hotel, em Havana, o jornalista George Greene (GG) é confundido com o celebre escritor – mas nada faz para desfazer o equívoco.

Em uma boate de sexo explicito, GG se apaixona por um dos atores, o Super-homem, que fora do palco, peruca e roupas femininas, adotou o nome de Caridad. 

Poderia ser apenas mais uma dessas histórias estranhas de opostos que se atraem, se não houvesse um cadáver entre eles. Resultado: polícia e notícia em jornal. As manchetes proclamam ao mundo que Graham Greene, acusado de homicídio, havia sido preso na companhia de uma travesti.

Evidentemente, o verdadeiro Graham Greene estava longe. Morando na ilha de Capri, o inglês tinha acabado de escrever O Americano Tranquilo (The Quiet American, que foi publicado em 1955). Esse romance é protagonizado por um complexo triangulo amoroso durante a Guerra da Indochina. Em paralelo, há debates sobre a política intervencionista dos estadunidenses e o conceito de democracia.

Por razões que somente a irracionalidade explica e contrariando o conselho de seu agente literário, Graham Greene, ao saber das notícias, viaja para Havana. A possibilidade de se encontrar com o seu duplo é mais estimulante do que ficar esperando que a situação seja esclarecida.

O que se segue é muito bizarro. Há prostitutas e personagens folclóricos, há os laços de amizade e uma quadrilha de gangsters, há fascistas e a KGB. Diversos personagens do submundo de Havana também participam do enredo. Tudo fica nebuloso. O enredo se torna um grande pastiche dos romances de espionagem na medida em que surgem complicações, ameaças e conspirações por todos os lados.

O duplo, figura patética que encontra a satisfação sexual e amorosa nos braços de Caridad, nada mais é que um pretexto para atrair a presença do personagem Graham Greene para Havana. Uma vez que isso se concretiza, ele não se faz mais necessário, surgindo em cena apenas mais uma vez. Resta ao escritor-personagem tentar sobreviver em uma selva de mal-entendidos, equívocos e desacertos. Não resta motivo para ter saudades quando ele, finalmente, consegue deixar Havana.
 
Pedro Juan Gutiérrez
Ler os dois livros em sequência significa entender o quão largo é o horizonte da literatura. O contraste entre duas narrativas tão diferentes em linguagem e estilo literário produz estranhamento. E, de uma forma ou de outra, modifica o leitor (que, entre um livro e outro, procura por convergências, por afastamentos, por algum tipo de alivio).  Dentro dessa espécie de curto-circuito não há salvação.       

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