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domingo, 2 de setembro de 2018

SEIS POEMAS DE HANS MAGNUS ENZENSBERGER






PARA O LIVRO DE LITERATURA DE SEGUNDO GRAU

Não leia odes, meu filho, lê os horários
(dos trens, dos ônibus, dos aviões);
são mais exatos. Abre os mapas náuticos
antes que seja tarde demais. Sê vigilante, não cantes.
Chegará o dia em que eles, de novo, pregarão listas
no portão e desenharão marcas no peito daqueles que dizem
não. Aprende a ir incógnito, aprende mais do que eu:
a mudar de bairro, de passaporte, de rosto.
Entende da pequena traição, da salvação suja de todos os dias. Úteis
são as encíclicas para se fazer fogo,
e os manifestos: para a manteiga e o sal
dos indefesos. É preciso raiva e paciência
para se soprar nos pulmões do poder
o fino pó mortal, moído
por aqueles, que aprenderam muito,
que são exatos, por ti.


RONDÓ

Falar é fácil.

Mas, não se comem palavras.
Portanto, faze pão.
Fazer pão é difícil.
Portanto, torna-te padeiro.

Mas, num pão não se mora.
Portanto, constrói casas.
Construir casas é difícil.
Portanto, torna-te pedreiro.

Porém, em cima de uma montanha não se constroem casas.
Portanto, transporta a montanha.
Transportar montanhas pe difícil.
Portanto, torna-te profeta.

Porém, os pensamentos não se ouvem.
Portanto, fala.
Falar é difícil
Portanto, torna-te o que és.

e segue murmurando, só para ti,
criatura inútil.


ANÚNCIO DE PEDRA

Perdem-se o cabelo, os nervos,
vocês entendem, o tempo precioso,
perde-se altura no posto
perdido, brilho, sinto muito,
não faz mal, por pontos,
não me interrompam, perde-se
sangue, pai e mãe,
o coração perdido de Heidelberg,
sem pestanejar
perdem-se, de novo, os encantos
da novidade, passe-se um esponja,
os direitos civis, oh sim,
a cabeça, em nome de Deus, a cabeça,
se for indispensável,
o paraíso perdido, por mim,
o emprego, a ovelha perdida,
a cara e ainda por cima,
um molar, duas guerras mundiais,
perdem-se três quilos de sobrepeso,
perde-se, unicamente se perde, também
as ilusões perdidas há muito,
vá lá nem uma palavrinha perdida
sobre o esforço perdido,
vá, a luz dos olhos
perde-se de vista, uma pena, a chave da casa,
uma pena, a si mesmo, perdido em pensamentos,
perde-se a gente na multidão,
não me interrompam,
o juízo, o último vintém,
seja, mas já estou chegando ao fim,
a linha, o saco e a farinha,
perde-se tudo de vez,
ai, inclusive o fio,
a carteira de motorista, e a vontade.


RISCAR O QUE NÃO DIZ RESPEITO

O que torna tua voz tão chata
tão fanzina, tão de lata
é o medo
de dizer algo errado

ou sempre a mesma coisa
ou aquilo que dizem todos
ou algo sem importância
ou algo sem defesa
ou algo que poderia ser mal interpretado
ou que agradaria à gente errada
ou algo bobo
ou algo que já foi dito
algo velho

Não estás farto
por puro medo
por puro medo do medo
de dizer algo errado

de dizer sempre o errado?


AULA DE CIVISMO

Hoje vamos estudar o vencido.
Na sua expectoração viscosa arrasta-se o vencido,
com seu cassetete, com suas náuseas,
sobre os paralelepípedos salgados. Longe, nos fundos,
o seu último amigo à espreita. Vocês veem,
como o vencido lambe discretamente
seu paladar magro! Ele come,
naturalmente, cala-se, naturalmente,
em alemão. Desempregado, respira.
Também a sua pele sofreu, isto
se vê, do velho mal.
Ela envelhece normalmente, sem dinheiro.
A vingança também está esburacada,
isso se sabe, não aquece. Não,
claro que não. Mas, ele a pensa,
sem parar, até a pele. Sangue
é o que cheira, em alemão. O vencido
é instrutivo, estudemo-lo.
Ainda se move, vocês veem, o vencido,
ofega, se defende, tosse.
Ora cambaleia, ora afugenta
o último amigo.
Move-se. Ainda não está vencido.



RAZÕES ADICIONAIS PARA OS POETAS MENTIREM

Porque o momento
no qual a palavra feliz
é pronunciada,
jamais é o momento feliz.
Porque quem morre de sede
não pronuncia sua sede.
Porque na boca da classe operária
não existe a palavra classe operária.
Porque quem desespera
não tem vontade de dizer:
“Sou um desesperado”.
Porque orgasmo e orgasmo
não são conciliáveis.
Porque o moribundo em vez de alegar:
“Estou morrendo”
só deixa perceber um ruído surdo
que não compreendemos.
Porque são os vivos
que chateiam os mortos
com suas notícias catastróficas.
Porque as palavras chegam tarde demais,
ou cedo demais.
Porque, portanto, é sempre um outro,
sempre um outro
quem fala por aí,
e porque aquele
do qual se fala
se cala.  



P.S: Todos os poemas encontram-se no livro Eu falo dos que não falam (São Paulo: Brasiliense/Instituto Goethe, 1985), com tradução de Kurt Scharf e Armindo Trevisan. 

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