Vila de Nossa Senhora dos Prazeres, 25
de setembro de 2018.
Ilustre e ilustrado,
Sinto falta de nossas conversas. Sem
destino, atravessávamos a região central da aldeia – diversas vezes –,
colocando em ordem a desordem do mundo. Em alguns finais de manhã, a gente se
encontrava na frente de “A Cutia” e, como se houvesse uma mola propulsora,
imediatamente começávamos a dar palpite em tudo o que nos era possível.
Literatura, cinema, política – para cada assunto tínhamos uma opinião (mesmo
que errada). Alguns desses diálogos eram continuações de dias anteriores ou
consequência imediata de algum artigo publicado na Folha de São Paulo, no Clarín ou no La Nación, jornais que você lia todos os dias, na Internet,
antes de sair de casa.
A amizade nos fez ter liberdade para
tratar de questões pessoais – e naquele tempo muitas coisas estavam fora do
lugar na minha e na tua vida. Mas, independente de facilidades ou dificuldades,
levávamos a carga pesada com esforço e algum (mau) humor. Navegar é preciso,
viver não é preciso, dizia o poeta, precisando o que é precioso.
Muitas vezes, esse nosso exercício
peripatético se estendia até o escritório do João Rath, que ficava nos fundos
de A Sua Livraria, ali na Rua Nereu Ramos. O livreiro, entre uma cuia de
chimarrão e outra, estoicamente continuava a trabalhar na contabilidade
enquanto a discussão prosperava. Ou se exauria. Vez ou outra, embora isso fosse
raro, João arriscava uma opinião, um juízo de valor. Mas, sempre com cautela, com
discrição. Ele era sábio. Nós éramos franco-atiradores, a metralhadora
giratória destruindo tudo o que se movia ao redor.
Não raro a prosa (como dizem os
lageanos) se estendia pelo almoço, lá no Laghos (restaurante, na época, anexo
ao Grande Hotel Lages). Invariavelmente, tínhamos companhia (Eda Arruda Scur, Lélia
Pamplona, Mítia e outros menos votados). Nesses momentos, noblesse oblige,
deixávamos o entrevero de lado e voltávamos à civilização. E fazíamos isso com alegria.
Lembrar o passado mítico (sempre místico) era uma das muitas formas com que
celebrávamos o amor que temos pelos campos do Planalto Catarinense.
Recordo que a euforia foi quebrada
várias vezes. Quando alguém, por esquecimento ou provocação, lembrava algum
tema político, os impedimentos básicos caiam por terra. O ódio mortal que você
dirigia à Petrobrás assustava. E isso remetia a uma perda absurda – tantas
vezes vi você prestes a chorar, com o coração dilacerado.
Nesse conjunto de lembranças, talvez
para espantar a tristeza que subitamente apareceu aqui, cabe-me destacar que, por
algum motivo, você rompeu relações comigo durante um período. Isso foi antes do
lançamento de A Caudilha de Lages, que é de 1987. Não tenho a mínima noção da
razão de você ter se “agravado”. Pode ter sido alguma trapalhada ou um desses
vexames que caracterizam minha maneira de ser e estar. Também pode ter sido porque certo dia você acordou de “útero virado” (como costumava dizer outro amigo
comum). Não lembro. E tenho dúvidas se isso é importante. Provavelmente não o
é. O fato significativo está em outro patamar. Quando o livro foi lançado, comprei
um exemplar. Solicitei que D. Maria Rath servisse de intermediária para o
necessário autógrafo. Foi como um passe de mágica. De repente éramos amigos de
infância outra vez. Óbvio que isso é força de expressão, figura de linguagem,
vinte anos de diferença etária nos separavam.
Algum tempo depois, por força da baixa
imunidade emocional, entrei em uma espiral de ruínas. Então, para tentar
esquecer um drama particular, fui morar em Florianópolis e, depois,
em Itapema. Não demorei. Tudo por lá me parecia estranho, diferente. Percebi
rapidamente que precisava regressar. A vida é assim mesmo, aterrorizante.
Talvez a maior consequência disso tudo seja que voltei de lá com uma dissertação
de mestrado debaixo do braço. Escrevi sobre os teus livros. Não ficou aquilo
tudo. Fiz o que foi possível naquele momento. Para minha surpresa, você gostou.
Principalmente da parte em que, em um artigo publicado na revista da pós-graduação, me refiro ao homem que fica na janela observando (e anotando) o
mundo que desfila diante de seus olhos. A fábula do cavalo encilhado que
aparece para cada um de nós (e raramente o montamos) sempre esteve presente no
imaginário dos habitantes desse pedaço de terra que vai se espalhando pelo sul
adentro.
Ah, mudando de assunto, mas continuando
afeito ao conteúdo das missivas mais tradicionais, poderia preencher páginas e
mais páginas com informações sobre os habitantes da comarca. Pequenas
histórias, escândalos burgueses, tolices típicas de freguesias interioranas,
desatinos reportados em jornais e rádios. Não vou fazer isso. Não se faz
necessário. Lá no O Gaudério de Cambajuva você resumiu a situação:
A vida escorria ali sem pressa como a baba pegajosa dos bovinos que povoavam seus campos.
E que, após lenta engorda, rendiam polpudos juros logo dissipados no ócio dos cafés e nas alcovas das inúmeras amantes.
Mesmo assim havia sempre alguém preocupado em descobrir qual a vocação econômica daquele lugar.
Que, segundo o Doutor Cerquilho, advogado por hábito e filósofo cínico por vocação, resumia-se em “agiotagem, vadiação e putaria”.
De resto, os velhos patriarcas políticos seguiam apascentando paternalisticamente seus dóceis rebanhos eleitorais.
O entreposto comercial nunca deixará de
ser entreposto. Entre o caminho das tropas e os descaminhos da boiada, a província
se transformou em massa amorfa, sem identidade, sem saber que rumo tomar,
contente que está em ficar no mesmo lugar. Foi essa a herança que António
Correia Pinto de Macedo nos deixou – ratificada, mais tarde, por Paulo Setúbal
e pelas várias pessoas que escreveram sobre o feudo medieval que chamamos de
lar.
Pois é, estimado amigo, para não correr
o risco de me espichar demais, ou de violar as fronteiras da prudência (se é
que já não fiz isso!), vou terminando essas mal traçadas linhas (como se dizia
no tempo de nossos avós). Os sete anos de tua ausência produziram um vazio
abissal na cultura da paróquia. Ficaram os teus livros e uma meia dúzia de “causos”
pessoais. É muito? É pouco? Não sei. O que sei é que sinto falta de nossas
conversas.
Abraços,
Buenas Raul, Se puder acrescente Adeodato. Abração!
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