Deixei a quarentena faz alguns meses. Evidentemente, não foi uma decisão tranquila. Gosto de ficar em casa. É o lugar onde me sinto bem e estou protegido. Os livros e os filmes são os meus anjos da guarda particulares. Mas, antes de receber alguns elogios (vagabundo, preguiçoso, encostado e parasita são os clássicos da atualidade) e a bem do serviço público e dos meus credores, atendi a convocação e voltei ao trabalho presencial.
Tenho um pouco de medo. Não muito. O suficiente. Isso significa que, profilaticamente, fiz algumas mudanças nos hábitos alimentares, deixei de lado (temporariamente – espero) as bebidas alcoólicas e o consumo de água mineral (com gás) adquiriu uma frequência absurda. Ainda estou avaliando se essas trocas me favorecem ou apenas ampliam a paranoia.
A pandemia aumentou as carências. Sinto falta de ir ao cinema e de viajar. São interdições que contribuem para que o mal-estar apareça com a desfaçatez de uma visita indesejada.
Na dia a dia da repartição, como não sou (desculpem-me pelo palavrão) cafeólatra, fui inscrito no livro (imaginário) das aberrações que caracterizam o funcionário público. Quer dizer, nesses trinta e cinco anos de trabalho (trabalho?) no quarto ou quinto escalão da prefeitura, talvez sexto, devo ter fornecido ao distinto público muitas amostras de, na falta de expressão melhor, excentricidades – que, aliadas ao mau humor, são mais do que o suficiente para me caracterizar como alguém cuja companhia deve ser evitada ou, em hipótese remota, ser transformado em objeto de estudo antropológico.
Várias vezes tentei convencer os colegas na repartição que interpretar esse personagem faz parte do show. Fracasso total. Devo ser um péssimo ator. Isso talvez explique porque, em tempos idos e vividos, fiz de tudo um pouco nos bastidores do teatro do Colégio Diocesano (contrarregra, assistente de direção, ponto), menos pisar no palco e brindar a platéia com uma ou duas falas. Para piorar o perfil, exerci a crítica teatral e fui jurado (duas vezes) do Festival de Teatro de Lages (FETEL) e (uma vez) do Festival Catarinense de Teatro (em Florianópolis). Tenho fotografias para provar esses desatinos. O passado nunca deixa de estar presente.
Fugi do assunto, ou seja, ao relatar alguns fatos acessórios deixei de lado a minha história profissional. Freud explica. Ou complica. Então, cabe retomar o caminho da roça, como dizia a minha avó. Tudo bem, não vou fazer isso. Gosto desses atalhos do inconsciente, desse tergiversar sem muitos compromissos com a objetividade. Infelizmente, o barroco (e seus penduricalhos) está morto e ninguém suporta qualquer perspectiva que pareça ser mais divertida do que a linha reta. Eficiência é o símbolo da modernidade.
Eis o nó da questão. Não sou moderno. Também não sou ludista. Aprendi os rudimentos da computação por estrita necessidade de sobrevivência e depois de alguma experiência fui forçado a concluir que a operação Ctrl C e Ctrl V identifica (na área da escrita) a mais importante inovação da história dos meios de comunicação. Mudar a ordem dos parágrafos sem ter que "dedografar" o texto outra vez é uma benção divina. Mesmo assim, tenho saudades das velhas máquinas de escrever, do barulho da campainha quando terminava a linha, do mudar a folha de papel (Chamex A4) e dos dedos manchados de tinta depois de trocar a fita. Era um tempo em que se cultivava a ilusão de que o ritual da escrita nos transformava em criaturas melhores.
Diante do computador (seja no serviço, seja em casa) essa sensação desaparece. Não mais reconheço minha letra cursiva (tantos textos escritos à mão no meio da madrugada), não tenho mais a Olivetti portátil que – incontáveis vezes – garantiu os trocados para sobreviver até o dia seguinte. Diante do computador, sinto que sou uma fraude.
E isso significa que ainda tenho muito o que aprender. Segunda-feira (na repartição) recomeço.
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