Páginas

domingo, 17 de janeiro de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXXVI)

 


Meu braço está esperando pela vacina – e não estou preocupado com a procedência do medicamento. Quero a imunidade o mais rápido possível. Ou melhor, quero a esperança de estar imune às diversas doenças (reais, simbólicas, imaginárias) que caracterizam a existência humana nestes tempos sombrios.

Outro dia alguém perguntou se, na impossibilidade de evitar as tragédias, não poderíamos ter uma tragédia normal? Fiquei pensando nos conceitos de tragédia e normal. Depois de constatar a beleza retórica dos oximoros, não fui muito longe. A afasia do discurso e o aturdimento impedem que se prenda o(s) vírus em um conjunto de palavras e, hermeneuticamente, seja possível desmontar a aflição.

Recusar os avanços da ciência sempre conduziu ao matadouro. Exemplos históricos não faltam. Sintomaticamente, é nos momentos de caos e falta de perspectivas que os profetas do apocalipse (αποκάλυψις) abandonam o inferno e invadem a Terra. As ilusões de um tempo novo, sem pecado, são arremessadas ao vento e encontram ouvidos atentos e dispostos a acolher esse chamado encantatório. O rebanho de ovelhas não consegue compreender que o mito faustiano promete o Paraíso e entrega a frustração (quer dizer, o abate). A necropolítica é o pretinho básico das sociedades predadoras.

A incompetência dos gestores da res publicæ se tornou visível na primeira crise, mas poucos se preocuparam com isso. Preferiram emular Pôncio Pilatos, aquele que terceirizou a responsabilidade. O mesmo procedimento foi adotado nas demais situações críticas, mostrando que a solidariedade, a empatia e a racionalidade se transformaram em elementos raros. O pesadelo parece não ter fim.

Desta vez, não há escapatória: o país está em metástase. O Brasil se transformou em um corpo tetraplégico – as instituições democráticas (salvo as exceções de sempre) parecem estar paralisadas. O Senado, a Câmara de Deputado e o Poder Judiciário não esboçam qualquer gesto para frear o ódio e a cegueira política. Talvez estejam esperando o colapso total. Não ficaria surpreso se a intenção fosse essa.

Enquanto isso, cientistas em diversos lugares do planeta trabalham incansavelmente para produzir algum tipo de antídoto ao Covid-19. Entre os remédios que estão prontos ou que estão sendo aperfeiçoados, todos propõem erradicar a pandemia o mais rápido possível. Talvez seja esse o único caminho possível para que a população mundial possa reconstruir as suas vidas.

No entanto, setores negacionistas querem renunciar a esse benefício. Ou melhor, estão questionando o trabalho dos cientistas. Na pátria idolatrada, o pensamento vazio da ignorância possui força e arrasta multidões para o abismo. Com o apoio religioso e dos aparelhos ideológicos do Estado, estão flertando com a morte, estão querendo voltar à era do contrailuminismo. Diante da luz, o mormaço ofuscante que caracteriza o Armagedom (Ἁρμαγεδών) reage violentamente contra qualquer atividade propositiva.

Os eventos de novembro de 1904 não ensinaram nada para aqueles que estão ensaiando uma nova revolta da vacina. Enquanto o mundo está prestes a desmoronar e temos dificuldades para respirar, o meu braço continua esperando pelo fim da barbárie.

Ao fundo, como se fosse parte da trilha sonora que acena com a possibilidade de dias melhores, ouço Alceu Valença: Na bruma leve das paixões que vêm de dentro / Tu vens chegando para brincar no meu quintal / (...) // Tu vens, tu vens / Eu já escuto os teus sinais.


Nenhum comentário:

Postar um comentário