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terça-feira, 23 de março de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXCV)

 

É assim que quero lembrá-la: debochada, mostrando a língua para o mundo.  


Faz uma semana que estou pensando no significado da palavra órfão. Ainda não consegui estabelecer a exatidão do que ela representa nas nossas vidas (de meus irmãos, na minha). Romper o cordão umbilical – desta vez, para sempre. Maria Alvina Furtado Wolff, aquela que durante algum tempo utilizou o sobrenome Arruda, 82 anos, faleceu na manhã de terça-feira (16/03), depois de cinco dias de internamento hospitalar.   

Dona Vina detestava ser chamada de Maria, dizia que não queria se perder na Legião de Maria (todas as suas irmãs são Marias). Era única, dessas que estabelecem identidade própria. Parte da explicação para esse proceder está no fato de que ela conjugava o viver hoje e inventar o amanhã. Detestava o passado. 

Minha mãe era vaidosa, o guarda-roupa repleto de possibilidades. Bastava sobrar algum dinheiro e ia às compras, dezenas de botas e sapatos, calças e blusas, perfumes. Fazia questão de estar bem vestida – a necessidade psicológica de dizer ao mundo que os tempos de penúria tinham passado. Não era verdade, a batalha diária era consequência da falta de dinheiro, o eterno vestir um santo e desvestir outro, como se dizia em outros tempos.

Em 1972, rebelou-se contra o patriarcado e abandonou o marido. Cansou de representar o papel de mulher dócil e submissa. Como não poderia ser diferente, foi alvo de “elogios entusiasmados” da tradicional família lageana, aquela que esconde os próprios pecados e não economiza nos boatos e infâmias (para o bem e para o mal algumas das histórias atribuídas à minha mãe eram verdadeiras).

Precisando cuidar dos filhos pequenos, fez milagres com um orçamento doméstico escasso, insuficiente para pagar a comida e os gastos diários. Mesmo assim, tropeçando aqui, fugindo dos cobradores acolá, ensinou aos filhos que se deve agarrar a vida com as duas mãos, avidez misturada com coragem e teimosia.      

Feminista sem saber o que é o feminismo, e mesmo se soubesse o que isso significa provavelmente faria algumas objeções, o prazer de violar as regras era o seu prazer, minha mãe reconstruiu a vida amorosa inúmeras vezes. Isso quer dizer que trocou de parceiros com frequência. Sabia que amor e sexo são coisas diferentes e que a liberdade não pode ser restringida por convenções de posse ou de domínio masculino.

Adorava viajar. De tempos em tempos ia para Brasília, Curitiba, Cuiabá. Sempre para longe. Sempre voltando, muitas vezes por pura inércia. Parecia cigana, seis meses em lugar, um ano em outro. Devorar horizontes era um de seus lemas. Em um desses passeios sofreu um grave acidente automobilístico. Recuperou-se. E sossegou por algum tempo. Não muito. A estrada não parava de lhe chamar para novas aventuras.

Criada no catolicismo migrou para as religiões de matriz africana e, em menor intensidade, para o espiritismo. Do ponto de vista religioso, Dona Vina era ecumênica. Frequentava terreiros e sessões de passe. Ia à missa. Fazia oferendas para Ogum e Iemanjá. Lia cartas de tarot, receitava remédios caseiros, dava conselhos, rezava para as entidades.

Como mantinha um calculado distanciamento emocional das pessoas, há quem diga que ela guardava os sentimentos em lugar secreto, longe dos olhares. Lembro-me, em especial, de um momento em que deixou escapar a emoção. Em uma das muitas viagens que fiz à Florianópolis, passei no Shopping e, como era dezembro, comprei um boneco de Papai Noel e chocolates. Não me parecia ser coisa importante, apenas algumas lembranças natalinas. Ao desembrulhar o pacote, as lágrimas escorreram pela face. Disse-me que, na infância e adolescência, nunca ganhava presentes, uma das desvantagens de morar – desde criança – na propriedade de meus avós (como era comum na época, foi filha de criação). Fiquei sem saber o que fazer ou dizer. Somente mais tarde é que percebi que, em algum lugar de sua mente, um gatilho havia sido disparado e libertado a dor que acompanha algumas lembranças, mágoas e ressentimentos.     

Por último, uma lenda familiar. 

Minha mãe reuniu os netos mais velhos e disse:

– Vocês estão proibidos, por enquanto, de ter filhos. Eu sou muito nova para ser bisavó.

Tinha quase 70 anos. 

Talvez fosse apenas uma brincadeira. Talvez. Mas, como é comum nessas histórias em que os velhos querem ditar as regras de comportamento para os seus descendentes, foi a neta mais nova quem a desobedeceu primeiro.   


5 comentários:

  1. Ah, Raul, lindas memórias. O tempo deve torná-las doces. Forte abraço querido amigo.

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  2. Sensível e tocante. Bela história, muito aprendizado!

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  3. Querido Raul, amei o seu relato, obrigada por compartilhar estas doces lembranças! Abraços, adorei a D. Viva!

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  4. Que relato emocionante! Que vida Bel!eis sentimentos!

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  5. Que linda homenagem Raul...fiquei emocionada...Tenho certeza que ela se orgulhava muito de você...Fica com Deus!

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