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sexta-feira, 12 de março de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXCIII)

 


O som da respiração. Um dos muitos ruídos que acompanham o corpo. Uma segunda pele. No dia a dia ninguém o percebe. Está incorporado às banalidades do cotidiano. Alguma coisa precisa acontecer para que possa ser escutado.

Madrugada de quinta-feira. Sonolento, atendo o telefone. Um funcionário da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) está me informando que abriu vaga no hospital e que preciso assinar os papeis de internamento da minha mãe. Depois de perceber que não se trata de um sonho ruim e que a realidade não economiza na brutalidade, levanto da cama, visto a primeira muda de roupa que encontro, calço a bota, separo duas máscaras descartáveis e abro a porta do apartamento.

A rua está deserta. Cenário de filme apocalíptico. São cerca de 20 minutos de caminhada entre um ponto e outro. Depois de algum tempo, uma viatura da polícia passa lentamente ao meu lado e desaparece na imensidão que acompanha as luzes urbanas. Mais adiante encontro um sem-teto, que está dormindo numa escada – sem se preocupar com a precariedade que o envolve.

Caminhar ajuda a controlar a ansiedade. Essa é uma das vantagens de não ter carro. A cada passo o pensamento vai sendo separado das impurezas. A procura por algum tipo de explicação envolve as distâncias.   

Há uma beleza inexplicável no silêncio. As casas e os prédios parecem estar flutuando na névoa. Tenho dificuldade para reconhecer os lugares por onde passo cinco dias por semana para ir para o trabalho. Esse estranhamento atrai e repele – simultaneamente.   

Em algum momento, quase como uma revelação, estou diante do hospital. Algumas pessoas estão conversando, um cachorro sem dono implora por um pouco de comida ou de carinho – o que for possível.  

A ambulância está atrasada. Sentado em uma cadeira, lamento ter saído de casa com pressa. Não trouxe comigo um dos vários livros que estou lendo. Impotente, espero. O tempo é uma ilusão interminável. Mantenho o celular no bolso da calça. Não quero me perder nas trapaças da internet.

A maca passa rapidamente pela porta e só consigo ver que minha mãe está inconsciente, o rosto encoberto pela máscara de oxigênio, o fio da vida quase se rompendo.

Assinei alguns papeis. Atordoado, não consegui entender o que aquele conjunto de palavras impressas queria dizer. Provavelmente tratava-se de mera formalidade, a incessante produção de documentos para iludir o caos que a burocracia ambiciona (inutilmente) combater.

Voltei para casa. Depois de quase duas horas atravessei outra vez a cidade. O mundo estava diferente. O entendimento das coisas foi alterado. As lojas e os edifícios perderam o brilho, blocos de concreto, aço e vidro se tornaram incompreensíveis ao olhar. 

Subitamente percebo o som. Estou ofegante. Os pulmões em descompasso – como se estivesse faltando oxigênio. O coração acompanha essa falta de delicadeza. 

O encantamento está em poder respirar – suavemente.          


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