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segunda-feira, 12 de abril de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXCVI)

 


Estou de férias. Resolvi desacelerar e, se for possível, respirar melhor. Trinta dias não serão suficientes para alcançar a serenidade de monge budista ou de mártir cristão. Não tenho vocação para esse tipo de estoicismo. Mas, se isso significa alguma coisa, estou me esforçando para ficar distante dos problemas, para diminuir a aflição.

Estar em casa, envolto no silêncio, deve auxiliar na faxina geral. Mas não se trata de jogar fora objetos que foram sendo acumulados com o passar do tempo. Esses não importam muito e não constituem estorvo ou admoestação. A questão principal é de outra ordem. Um conjunto de acontecimentos pessoais me deixou próximo do nocaute. Cambaleei, quase fui ao chão, estou tentando recuperar o prumo e, na medida do possível, seguir em frente.

Desta vez, o fosso (repleto de jacarés famintos) que construí ao meu redor não foi capaz de fornecer proteção. O desassossego encontrou uma fissura na parede e invadiu – sem pedir licença, sem se importar se estava instalando a angústia e a tristeza. Dizem (esteja o sujeito preparado ou não) que as perdas fazem parte da vida e que o show deve continuar. 

Recomendaram-me procurar por ajuda profissional. Recusei. Decidi – em um primeiro momento – enfrentar a tempestade de mãos limpas, sem escudos, sem rede de proteção. Não quero usar anestésicos. Além disso, tenho mais medo do que se encontra do lado de fora da porta do apartamento em que moro do que dos meus fantasmas particulares.

Inconvenientes, as recordações aparecem nos lugares e nas horas mais estranhas. No supermercado lembrei o pânico diante de escada rolante e de elevador. Não adiantava insistir que aquilo era pouco razoável, um temor bobo, você preferia subir pela escada convencional três, quatro andares, gastando fôlego. Eu, claro, ficava furioso. Depois, uns cinco minutos depois, vencido pelo inevitável, também estava achando graça com aquilo tudo, uma imensa bobagem que compartilhamos tantas vezes.

As fotografias estão ficando desbotadas. Sentado no sofá, olhei uma por uma, o álbum transformado em catálogo de conversas, histórias, desentendimentos. Você sabia que essa coisa estranha que chamam de felicidade encontra sentido em pequenas vitórias, em detalhes quase insignificantes – quantas vezes a risada fácil espantou os vizinhos nos mil e um lugares onde você morou?

Nesses anos todos, uma legião de amigos e conhecidos entrou e saiu de tua vida. Alguns ficavam um pouco mais de tempo, outros eram fugazes. Poucos os permanentes. Essa circunstância parecia te divertir, a perspectiva de quem adorava as mudanças (algumas vezes trocava os móveis de um lugar para outro, na tentativa de imaginar que estava em outra casa, em outra cidade).

Foram muitas as ocasiões, durante uma visita, que você me perguntou, com voz doce, aquele mel da sedução, se eu não tinha uns trocados para “emprestar”. Emprestar a perder de vista?, eu perguntava imediatamente, confirmando a tática de provocação que solidificava o nosso (con)viver. Você olhava para o lado, talvez para dissimular a alegria. Ciente de que eu não negaria o dinheiro, pegava as notas rapidamente, me dava um abraço, e me mandava embora.     

Agora, depois que o cordão umbilical foi rompido em definitivo, só me resta administrar as lembranças, essa herança que emerge do passado em doses homeopáticas. 

Estou de férias – ajustando as contas com a nossa história comum. Ainda não estou preparado para dizer adeus.   




Um comentário:

  1. Ai amigo. Seguidamente tomo conhecimento de alguma coisa qualquer, que seria muito interessante compartilhar com o "Cabeção", mas que sequer faz diferença existir ou não já que não podemos prosear. 26 anos depois ainda faz muita falta, mas o tempo ensina a conviver com a nova realidade, porque tem mesmo que seguir. Forte abraço. 🙌🤜🤛

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