Os depoimentos das médicas Nise Yamaguchi (oncologista) e Luana Araújo (infectologista) na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado Federal, nos primeiros dias de junho, deram vazão a um conjunto de emoções que trafegam pelo mundo binário (bem e mal, certo e errado, inteligente e ignorante, hesitante e convicta). Mas, antes que alguém se apresse em cravar algum juízo de valor, convém lembrar os versos de uma canção antiga do Tunai, as aparências enganam / aos que odeiam e aos que amam.
Nise Yamaguchi e Luana Araújo são água e azeite, não se misturam. Foi essa a impressão geral do público. A primeira (descendente de orientais, voz suave e titubeante, cabelos alvoroçados) está com o pensamento na Idade Média. A segunda (caucasiana, voz firme e assertiva, cabelos que devem custar uma fortuna em salão de beleza) é uma defensora intransigente da ciência. Essa comparação desproporcional (e preconceituosa, por diversos motivos) induz a ilusão de que os apoiadores do governo são pessoas sem grandes atributos intelectuais.
As duas mulheres resguardaram, cada uma ao seu modo, a neutralidade política da ciência. Disseram que a técnica não possui ideologia e que, nesses termos, tudo o que desejam é servir – da melhor maneira possível – ao país. Uma evidente falacia, típica de quem deseja obter o bônus e fugir do ônus. Contraditoriamente, nenhuma das duas soube explicar porque votou no atual governo, que está sucateando as universidades e, consequentemente, a pesquisa científica independente. No caso de Nise Yamaguchi, que continua acreditando no uso de medicamentos preventivos contra o vírus pandêmico (Hidroxicloroquina, Ivermectina, Nitazoxanida, Dexametasona, REGN-COV2, etc.), não há porque duvidar de sua escolha na hora do voto. Segue uma linha de ação coerente com o seu pensamento reacionário e confuso. O que parece estar fora de tom é a posição de Luana Araújo, que, depois de ter sido rejeitada pelo governo, adotou (adorou?) a estratégia de disparar uma saraivada de argumentos muito bem embasados contra a maneira com que o Ministério da Saúde está conduzindo as medidas sanitárias de combate ao coronavírus.
O massacre promovido pelo Senador Otto Alencar (PSD-BA) no dia anterior não se repetiu no depoimento de Luana Araújo. Ou seja, houve uma diferença de tratamento em relação aos dois testemunhos. E isso é constrangedor. Inúmeros ruídos adquirem relevo no discurso que aclama o que interessa ao ouvinte e repudia – violentamente – o que não agrada. Pouco importa a fraqueza dos argumentos de Nise Yamaguchi ou a sua visível debilidade no domínio dos conceitos elementares de infectologia, o que precisa ser destacado é que a coerência raramente adquire consistência na retórica daqueles que detém o poder (mesmo quando momentâneo).
O intelecto costuma se enganar com as questões estéticas. Uma mulher bonita, com grande conhecimento na sua área de atuação, que sabe cativar o público, costuma ser aplaudida pelo público masculino. E a política, por centenas de razões, é um terreno dominado por homens. Não foi surpresa o alijamento feminino na escolha dos titulares da CPI – uma forma simbólica de dizer que as questões de Estado precisam ser tratadas por quem "conhece o assunto".
A voz de Luana Araújo foi convincente. Disse o que deveria dizer e que todos queriam que alguém dissesse. No entanto, ao dizer o que disse, encobriu as lacunas, escondeu o que queria esconder, e camuflou o que, psicologicamente, lhe obrigou a agir como agiu. Foi performática. Ou melhor, teatral. Sem perceber o poder anestésico do canto da sereia, os espectadores aceitaram com alegria o que lhes foi apresentado.
A presença das duas mulheres na CPI lembrou
um clássico literário que anda esquecido pelos leitores, O médico e o
monstro, do Robert Louis Stevenson. Os senadores, entretidos pelos fogos de
artifício, não conseguiram distinguir as
diferenças (e as semelhanças) que existem entre Henry Jekyll e Edward Hyde. ´
Análise esclarecedora. De um modo ou outro, o aplauso dos que concordam e as vaias dos contrários estão sempre garantidos. Porque Narciso acha feio o que não é espelho.
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