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segunda-feira, 16 de agosto de 2021

LEMBRANÇAS DE REFEIÇÕES NA INFÂNCIA

 


Houve um tempo na história de minha família em que as refeições eram uma forma de reunião afetiva. Mais do que aproximar (ou afastar) pais e filhos, aqueles momentos ao redor da mesa serviam para acertar as contas. Enquanto distribuía o arroz ou a carne no prato dos filhos, a mãe costumava reclamar em voz alta. Não era fácil controlar quatro crianças. O pai fulminava o(s) indisciplinado(s) com o olhar. Corretivos físicos faziam parte do ritual. Enquanto alguns saboreavam a comida, outros descobriam que o almoço estava impregnado de violência. Muitas vezes a comida era engolida com lágrimas nos olhos.

Ao arroz e feijão, tínhamos frango assado, frango ensopado, guisados com batatas, bifes de fígado, buchada (dobradinha), estrogonofe, almôndegas, macarrão com sardinha. Comida de pobre. Que era devorada rapidamente. Seja porque era gostosa, seja porque a lentidão era premiada com a impossibilidade de repetir o prato. E nenhum pré-adolescente gosta de passar fome.

Enormes pedaços de polenta frita, recheados com queijo colonial, empanados em ovo e farinha, se transformavam em iguarias dignas do Guia Michelin. Em dias especiais (aniversários, natal, páscoa), bife à milanesa e batatinha frita. Aos domingos, lasanha. A travessa (pirex) fumegante diante de nossos olhos confirmava que, nessa festa, éramos felizes e sabíamos. 

Claro que essa abundância não existia nas refeições diárias – mas alguma coisa sempre estava lá. A mãe estava sempre renovando o cardápio, apesar do péssimo orçamento doméstico.  

Saladas eram raras. Não é comida, como costumávamos repetir, sonhando com pedaços enormes de carne ou coxas de frango. Mesmo assim, era costume ter à mesa alface, tomate e refogados diversos (repolho, couve, ervilha).

No meio da tarde, havia uma refeição intermediária, o café com mistura. Acontecia entre as dezesseis e as dezessete horas. Mas, nem todos eram convidados. Visitas tinham prioridade. A xícara de café bem forte (moído – socado – no pilão, lá nos fundos de casa) era acompanhada por uma fartura sem fim: bolo de fubá, cuca, bolachinhas de maisena com leite condensado, biscoitinhos de nata, sequilhos e bijajica. Quem quiser escrever sobre a vida alimentar dos lageanos deve reservar um capítulo para tentar explicar a importância das roscas de coalhada na mitologia gastronômica. Pensando bem, talvez um capítulo seja insuficiente.

Por razões que ignoro eram raros os jantares. As refeições noturnas eram substituídas por café ou um copo de leite morno misturado com algum achocolatado ou farinha láctea. De acordo com gostos individuais, o pão feito em casa (uma das sete maravilhas do mundo doméstico) era acompanhado por manteiga, nata, requeijão, mel, geleias diversas, queijo e mortadela. Tudo em porções moderadas, evitando o desperdício.

Devo ter esquecido alguma coisa. O quê? Não sei. Algumas vezes tínhamos canjica, coalhada, cuscuz e quirera com carne de porco. Peixe era raro. Somente na Semana Santa. Os serranos temem uma espinha de peixe atravessada na garganta. Ainda está por se descobrir o valor dos pescados.

Passados tantos anos, em oposição aos alimentos gourmet e outros modismos, resta-nos, através da imaginação, alimentar sabores que se perderam no tempo.



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