Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir. Nos últimos tempos, esse verso de Manuel Bandeira tem me visitado com frequência. Basta um descuido, um instante em que pensamento se desprende do mundo objetivo e, pimba!, ele surge na mente como se fosse parte da história que tento viver. Não é. Mas pode ser. Explico. Vou me aposentar em breve. Depois de (intermináveis) séculos como servidor público terei algum sossego. Terei? Há controvérsias. Mas, na medida do possível, quero deixar de lado os entraves e aproveitar essa fresta no modo capitalista de ser e fazer uma festa particular (que incluirá, obviamente, a preguiça – um dos meus mais importantes projetos de vida).
A liberdade é a mais sincera expressão da poesia.
Sobrará tempo para ouvir música (jazz, clássicos, MPB), para conhecer melhor a cidade em que vivo, para viajar. Penso em visitar os bons ares de Buenos Aires e os aromas amazônicos de Belém do Pará. São Paulo também está nos planos. Não sei se isso se transformará em algo concreto – mas, em caso positivo, prometo publicar nas redes sociais incontáveis fotos dos eventos.
No campo das realizações sempre adiadas, vários ensaios literários requerem conclusão. Iniciados estão, mas foram sendo deixados de lado na medida em que outras urgências tomaram forma e conteúdo. Algumas das ideias esboçadas precisam de reforma ou de acréscimos. Além disso, torna-se necessário superar os limites da linguagem, o extenuante esforço de transformar o nada em algo que possua substância. Penso em reservar as manhãs para essa aventura, o texto escorrendo pela tela do computador.
Centenas de livros parecem exigir leitura. Ler (ou reler) todos os livros que deveria ler (ou reler) implica em ocupar uma vida. Ou duas. Mas o tempo ruge – leão faminto e que exige a sua cota diária de carne. Se tiver paciência, posso tentar saldar uma dívida histórica. Nunca me aproximei de Proust, essa montanha mágica de papel e sentimentos. Como se trata de outro intento adiado sine die, e tendo em mente que a vida é muito curta (e a literatura, extensa) para esse tipo compromisso, pode ser que... que a procura pelo tempo perdido ocorra em outra encadernação.
Quero ir mais ao cinema (legendado, por favor!), estou defasado nessa arte, perdi centenas de filmes importantes. É o preço a se pagar quando escolhemos morar no interior (onde só existe acesso aos filmes comerciais). Poderia fazer o que todos fazem e piratear, mas a consciência (uma forma de traição ao pragmatismo) vive me dizendo que isso é errado e então... o impasse está posto e parece não ter solução.
Quero tomar bastante sorvete e cerveja (não ao mesmo tempo), quero recuperar os sabores das comidas chinesa, indiana, tailandesa e russa, o agridoce e o azedo dando as cartas e mandando a insipidez para longe. Churrasco é bom, mas não é tudo.
Enfim, quero viver – sem precisar suportar
as sobras/sombras da iniquidade, sem me sentir tolhido por horários e
compromissos. Quero – se for permitido – satisfazer o desejo (monstro que aguilhoa
o corpo, exigindo gozo).
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