Dizem que aconteceu com dois latifundiários lá das bandas da Coxilha Rica. Certeza ninguém tem sobre a veracidade, até porque quem contou varias vezes o episódio foi o Tonico Azambuja, sócio atleta do Bar da Felicidade.
Pois, o Ignácio, dono de imensa
sesmaria, era o melhor amigo de Eleutério, outro grande proprietário. Não havia
carreirada no Jockey Club, festa junina ou noitadas no Night Club Assunción em
que um estivesse longe do outro. Eram unha e carne. Mais do que irmãos,
compartilhavam de inúmeras afinidades comuns. Até que...
Um dia brigaram. Coisa pequena.
Parece que uma vaca derrubou uma cerca e invadiu a propriedade do outro. Um
empregado, sem perceber a extensão do gesto, prendeu a rês em um galpão. Tudo
aconteceu em um dia ruim. Na manhã seguinte, Eleutério acusou Ignácio de roubo.
Discutiram. Depois disso não mais foi possível acerto. Quase houve violência
física. O ódio tomou conta dos dois. Quando estavam na cidade, um mudava de
lado na calçada quando via o outro. Ostensivamente, passaram a promover
discórdias e inimizades. Eleutério não entrava em lugares frequentados por
Ignácio. Aliás, só fazia negócios com exclusividade – quem comprava ou vendia
alguma coisa para Ignácio podia se preparar para, como ele fazia questão de
dizer em voz alta, morrer de fome.
Na festa de São Sebastião, lá na
Capela dos Morrinhos, um foi pela manhã, o outro pela tarde. O pároco teve a
maior dificuldade para administrar a crise. E as "prendas"... Não há
festa de igreja sem doações da comunidade. No início, nenhum dos dois queria
saber do assunto. O padre, a bem do santo padroeiro, pediu "um
particular" com cada um dos inimigos. Poucos sabem o
que foi tratado nessas conversas – que demoraram uma
eternidade. O fato é que aqueles que – em outros tempos – foram amigos entraram
em uma competição brutal para provar quem era o maior devoto. O sucesso da
festa foi garantido por uma briga insana, dizia o sacerdote, enquanto enxugava
o suor da testa.
Algum tempo depois, Eleutério
teve um enfarte e a família o levou as pressas para a capital. Ignácio, tão
logo soube do fato, começou a falar mal do adversário e disse, entre trezentos
palavrões, que o diabo era capaz de se regenerar, já que o inferno era muito
pequeno para ser dividido com aquele filho duma égua. E, por conta da doença,
pagou várias rodadas de cachaça para os frequentadores da bodega do Chico
Cascavel.
Quando Eleutério morreu, Ignácio
não teve dúvidas: mandou estourar duas caixas de fogos de artifício Caramuru,
especialmente encomendados para a ocasião. Para quem quisesse ouvir, quase
gritava: Já vai tarde,
lazarento! Para coroar a demonstração de rancor, compareceu ao enterro. Foi se
certificar se era verdade que o desafeto iria comer capim pela raiz.
Cumprimentou a viúva e foi olhar o que restava daquele jaguara sarnento (o mais
suave dos adjetivos que pronunciou na ocasião). Ao redor, parentes e vizinhos
fizeram silencio, digamos, sepulcral. O rosto tranquilo do morto só aumentou a
raiva de Ignácio, que não conseguiu se controlar e, como se quisesse expulsar o
ódio que estava corroendo as suas entranhas, cuspiu no cadáver. Depois, foi
embora, o som de suas botas ecoando naquele fim de tarde, como se fosse o
anúncio de novas tragédias.
Nos meses seguintes, os dias
foram arrancados de maneira brutal da folhinha do Sagrado Coração de Jesus, que
estava pendurada em uma das paredes da sala. Ignácio se sentia mais leve e,
paradoxalmente, mais sozinho. Não era raro vê-lo assoviando músicas de baile.
Em algum momento impreciso, Ignácio mudou. Tornou-se um homem triste. Melancólico. Reclamava de qualquer coisa.
Daquela onipotência aristocrática só restaram vestígios esparsos. Magro,
parecia estar à espera da morte. Só adquiria vigor quando montava no cavalo e,
na companhia da matilha de cães de caça, se dirigia ao cemitério.
Enquanto a cachorrada latia
sem parar, Ignácio fazia o cavalo pisar no túmulo do inimigo. Depois, voltava
para casa, os olhos anuviados pelas lágrimas.
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