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quinta-feira, 8 de junho de 2023

ME CHAMA DE CASSANDRA



As palavras caindo como ameixas excessivamente maduras produzem um sabor amargo na história do soldado Raul Iriarte, personagem do romance cubano Me chama de Cassandra (Biblioteca Azul, 2023). Com tons de tragédia grega, mas com tempero caribenho e africano, o mundo em que o protagonista/narrador se movimenta vai se diluindo em sangue, lágrimas, sexo e morte. Em terras angolanas, lutando em uma guerra que não lhe pertence, entre tiros de metralhadora e disparos de morteiro, emulando a sacerdotisa do templo de Apolo, Raulzito, o Sem Ossos (e que gostaria de ser chamado de Cassandra, a filha de Príamo e Hécuba) consegue visualizar o futuro – mas ninguém acredita em suas previsões.

O dom do presságio estabelece uma carga muito pesada nos ombros de Raul Iriarte. Ver antecipadamente as calamidades que acontecerão com aqueles que lhe estão próximos causa angústia (em alguns momentos). Mas, sabendo que ninguém consegue mudar o destino, guarda para si as visões que surgem diante de seus olhos a cada instante: o redemoinho dos mortos como nuvens escuras de tempestade acima de nós.

Muitos dos soldados cubanos que foram ajudar na guerra civil de Angola (1975 – 2002) não conseguiram voltar para casa (estima-se em cerca de 10.000 mortos). Pelo ideal socialista, o sangue caribenho espalhou-se por uma infinidade de lugares (ruas das cidades, florestas). Encarregado de escrever os relatórios e as cartas que comunicam a morte dos soldados de seu batalhão, Raul Iriarte sofre por Cuba estar muito distante, muito mais longe de que a península grega está de Ílion. No entanto, a guerra em Angola, local do conflito político, não passa de uma moldura. A batalha mais árdua ocorre em outra esfera – o mundo onírico da mitologia grega.

Simultaneamente, Raul Iriarte aproveita a possibilidade do relato literário e, num vaivém temporal (desprezando as diferenças entre o passado, o presente e o futuro), relaciona alguns dos acontecimentos que foram marcantes em sua vida: o mundo familiar, a descoberta da identidade sexual (e de gênero), o alistamento militar, a violência que nutre os homens frágeis  e que ele precisa aguentar com resignação. 

Como se isso não fosse suficiente, as Erínias (Tisifone, o castigo; Megera, o rancor; e Alecto, o inominável) clamam por novos corpos. Avisaram-lhe que o seu tempo de vida é curto e que a viagem de retorno para dentro das muralhas de Ílion está próxima: Caronte (o barqueiro de Hades) iniciou uma nova travessia do rio Estige. E a sua chegada não vai demorar.

Raul Iriarte, aquele que foi amaldiçoado pelos deuses (gregos e africanos), com sua passividade diante dos acontecimentos, com uma cultura literária absolutamente inútil, caracteriza o deslocamento, o estranhamento, a perda e o exílio – ele sempre está em lugar errado. E o que escreve, construído com a linguagem da poesia que distingue aqueles que estão à margem do mundo estruturado pelo poder, irradia a pátina inconfundível de tristeza. Somente a estrutura mitológica de Homero, principalmente no episódio em que os aqueus estão sitiando Ílion, consegue fornecer algum anestésico a uma vida destinada a ser destruída pela barbárie.

Em Me chama de Cassandra, a miséria do mundo real, inscrita no corpo literário, reflete a dor que aflige o corpo físico. 

 

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