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sexta-feira, 17 de novembro de 2023

A CÓLERA DE AQUILES

 


Hybris é um conceito grego que significa, entre outras coisas, tudo aquilo que passa do limite. Literariamente, está associado com as ações de Aquiles durante o cerco de Ílion (Tróia) pelo exército grego. Quem conta essa história é Homero no poema Ilíada.

No décimo ano da guerra de Tróia, o destempero de Aquiles se aproxima do absurdo. Primeiro, ele se desentende com Agamêmnon e, num aceso de fúria, resolve entrar em greve. Ou seja, recusa continuar participando da luta. Somente vai mudar de postura com a morte de Pátroclo. Heitor, o herdeiro do trono troiano, arremessa uma lança contra o corpo do adversário, que tinha sido ferido por Euforbo. Sem procurar entender que o primo violou as regras de segurança ao roubar a sua armadura e substituí-lo no campo de batalha, Aquiles exige vingança a todo custo. Apesar de ser avisado por Tétis (sua mãe) de que se insistisse na fúria, morreria algum tempo depois, Aquiles enfrenta Heitor em um combate épico.

Depois de matar o troiano, e mostrando falta de compaixão, Aquiles recusa devolver o corpo do adversário e o arrasta pelo chão durante nove dias. Esse é um dos momentos fulcrais da narrativa. Ao não permitir as homenagens mortuárias para Heitor, e a trégua que isso acarretaria, Aquiles rompe com as normas sociais e, tomado pelo ódio, vilipendia a honra grega – que nunca mais poderá ser reparada. Essa brutalidade produz, nos homens e nos deuses, desprezo ao soldado quase invencível.

Foi necessário que Príamo, rei de Tróia, arriscando a própria vida, vá até o acampamento grego implorar pelos restos mortais do filho. A morte está associada com alguns rituais culturais e ele deseja que o corpo de Heitor tenha o funeral digno de um guerreiro. Também quer obter algum tipo de conforto para aqueles que precisarão continuar vivendo – o que não será possível enquanto o cadáver não for devidamente velado e pranteado pelos pais, irmãos, esposa, filhos, todos os troianos.

Matar Heitor não trouxe Pátroclo de volta e sequer permitiu alívio para as dores da perda de Aquiles. Ao contrário, aumentou os tormentos do grego. Aquiles sempre se sentiu desconfortável em um mundo onde era obrigado a ser agressivo a todo instante. Foi essa percepção que o imunizou de sentimentos que poderiam torná-lo humano – e, consequentemente, um fraco. Foi esse entendimento que motivou a barbárie insana.

Conforme estava previsto, logo depois que os gregos conseguem entrar em Tróia (usando um ardil elaborado por Odisseu), Aquiles foi morto por Páris (um dos irmãos de Heitor). A flecha certeira que atinge o calcanhar do grego é guiada por Apolo (deus do Sol) – um dos muitos inimigos de Aquiles.

Nas guerras, a loucura se impõe. Alimentada pela amargura, a civilidade é profanada a todo instante e perde o formato de regra comportamental. Deixam de existir as fronteiras entre o bem e o mal. Tudo passa a ser permitido. É como se a selvageria fosse o impulso necessário para humilhar o inimigo – e negar que o vencedor e o vencido são complementares (a morte de um é a morte do outro).

Na modernidade, a cólera de Aquiles costuma ser reencenada diariamente. 





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