Existe alguma forma de punir o mal? Mais do que um postulado filosófico, momento ideal para questionar conceitos e interpretações, essa pergunta encontra na literatura algumas respostas incômodas. Um exemplo é o conto O Carrinho, de Mariana Enriquez, que descreve um incidente estranho em uma área urbana – possivelmente na Argentina.
Um morador de rua, completamente bêbado, não consegue se controlar e defeca na calçada de um bairro pobre. Um dos moradores da região, igualmente alcoolizado, considera que houve desrespeito e vai tomar satisfação. Algumas pessoas ficam observando, rindo ou até incentivando a violência. Diante de um possível linchamento, a mãe da narradora intervém e consegue impedir um dano maior. O homem vai embora, mas é impedido de levar o carrinho de supermercado, onde armazenava papelão, latas, garrafas e outros itens recicláveis.
Mas antes de sair correndo em zigue-zague, fugindo de Juancho que o perseguia aos berros, olhou para mamãe com toda a lucidez e assentiu. Duas vezes. Disse mais alguma coisa, virando os olhos, abrangendo todo o quarteirão e além. Depois desapareceu na esquina.
O carrinho ficou esquecido em frente de uma casa abandonada. A chuva e o tempo fizeram com que o papelão desmanchasse, a comida que estava lá apodrecesse. Um cheiro ruim se instalou na região.
Em algum momento, uns quinze dias depois que o morador de rua foi espancado, começaram a ocorrer uma série de desgraças no bairro: assaltos, pessoas perderam os empregos ou morreram, carros foram roubados, as geladeiras do açougue queimaram, o mundo reconhecido como estável começa a desmoronar, Em dois meses, ninguém tinha telefone no bairro por falta de pagamento. Em três meses, tiveram que puxar energia direto do poste porque não podiam pagar a luz.
Poucos associaram uma coisa com outra. Exceto Juancho que, seja por paranoia ou porque precisava encontrar um culpado, colocou fogo no carrinho, alegando que o morador de rua era o responsável por tudo o que estava acontecendo.
O fato mais paradoxal dessa situação foi a imunidade da família da narradora. Na casa deles não faltava luz, telefone, internet, comida. Era como se estivessem vivendo em algum lugar distante da tragédia.
Mais do que uma metáfora sombria (próxima do terror) do que pode acontecer com aqueles que não reconhecem o outro como um irmão (aquele que não pode ou não conseguiu escolher um caminho melhor), o conto procura mostrar que existem forças no universo que não estão ao alcance da razão. Como consequência auxiliar, a narrativa adverte que, durante a catástrofe, os inocentes nunca estão a salvo. Não importa qual tenha sido a escolha no momento crítico, todos são arrastados pela avalanche.
Naquela mesma noite, papai nos reuniu
na sala de jantar para conversar. Disse que tínhamos que ir embora. Que iam
perceber que estávamos imunes. Que Mari, a vizinha do lado, estava um pouco
desconfiada, porque era difícil esconder o cheiro de comida, apesar de termos o
cuidado de vedar a porta para que a fumaça ou o aroma não passasse por debaixo.
Que a nossa sorte ia acabar, que tudo estava indo por água abaixo. Mamãe
concordava.
ENRIQUEZ, Mariana. O carrinho, in Os
perigos de fumar na cama. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2023. p. 31-39.
Tradução de Elisa Menezes.
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