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terça-feira, 28 de novembro de 2023

O ESCRIVÃO COIMBRA E OUTROS CONTOS

 


Passei os últimos quinze dias na companhia do Machado. Sim, o Joaquim Maria, conhecido na província por muito ter publicado nas gazetas do século XIX. Parece que tinha coceira nos dedos e nas ideias, visto que tentou de tudo um pouco: crônicas, contos, romances, poesia e, para o bem e para o mal, teatro. Não foi mau escritor, definitivamente não foi, mas faltava-lhe um bom agente literário e tradutores competentes. Sem isso nenhuma carreira literária prospera em um mundo onde a propaganda substituiu o talento.

Os 17 contos selecionados pelo Luiz Ruffato para O Escrivão Caminha e Outros Contos (São Paulo: Carambaia, 2021) não devem ser lidos como se fossem os melhores textos de Machado, são apenas aqueles que o organizador do livro considerou como seus preferidos. De minha parte, incluiria no volume Cantiga de Esposais, A Igreja do Diabo e As Academias do Sião. Mas essa objeção não tem a mínima relevância, tampouco reduz a importância da seleção e do Mestre. A responsabilidade daquele que vai ao pomar é a de tentar trazer as melhores frutas. Nunca está preocupado se algum sabor desagrada.

O famoso humour de Machado aparece em alguns dos contos. O cinismo, também. A última frase de Pai contra mãe mostra uma faceta que poucos ensaístas consideram como importante. Ao admitir que Nem todas as crianças vingam, o narrador (que exerce uma profissão pouco recomendável) referenda a eugenia (e, em paralelo, a escravidão). Alguém há de defender o sujeito alegando o zeitgest e outras patacoadas similares. A vida é seletiva, como comprova o conto.

O moralismo punitivo de O Caso da Vara assusta. A metáfora discriminatória usada em Singular Ocorrência não passaria batida atualmente (Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará). A tragédia burguesa, que encontra na traição conjugal o seu ápice, mostra o maior de seus lugares comuns em A Cartomante. A ingenuidade infanto-juvenil contrasta com o espelho da vida adulta em Umas Férias.

Significativamente, A Teoria do Medalhão não envelheceu. Os charlatães continuam sem originalidade, recitando frases feitas, tentando impor soluções fáceis para problemas complexos e, sobretudo, procurando levar vantagem em tudo. Assim como o pai de Janjão, são muitos os professores da mediocridade.       

A frase mais mentirosa da literatura brasileira (Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta) ainda causa desconforto no leitor. Que, aos dezessete anos, o narrador não tenha percebido as entrelinhas do evento, qualquer um compreende; mas que essa ingenuidade perdure vários anos depois, quando ele coloca no papel os acontecimentos... acredite quem quiser. São vários os trechos problemáticos de Missa do galo: a conversa sussurrada, a visão dos braços de Conceição, ou Deu a volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era cumprido e cobriu-as logo. Recordo que eram pretas. Essa citação é suficiente para escrever uma tese de doutorado (na área da psicanálise). No final do conto, ao saber que Conceição, depois que ficou viúva, casou com o escrivão juramentado do marido, o narrador parece propor o patético como desfecho; todavia pode ser que isso seja apenas a negação por não ter conseguido alcançar o que perdeu.    

Dito isto e o que deixou de ser dito, ficou belíssima a edição do livro: capa dura, projeto gráfico de primeira linha, papel de qualidade. Fantástica homenagem ao gênio do Joaquim Maria.


Joaquim Maria Machado de Assis (1839 - 1908)


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