Não importa quando, nem por quais motivos, estamos sempre voltando para casa. Essa afirmação provavelmente está conectada com a necessidade psicológica de recuperar algumas coisas que se perderam durante a ausência, ou melhor, a separação. O exílio, escreveu Edward Said, é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada.
Logo após a morte de seu pai, o filósofo francês Didier Eribon fez uma espécie de recuperação da história familiar em Retorno a Reims (Belo Horizonte: Âyiné, 2024). Mas, ao contrário do que manda a tradição neste tipo de narrativa, ele não quer produzir uma nova versão da Parábola do Filho Pródigo. O que escreveu está afastado da procura pelo acolhimento. O que passou, passou – não há motivos para arrependimento.
Embora tenha iniciado os seus estudos de filosofia na Universidade em Reims, somente depois que conseguiu sair de casa (e de Reims) é que Didier pode desfrutar da potência decorrente do exercício da sexualidade e do posicionamento político. Na infância e na juventude, os comportamentos e as ações eram definidos através dos relacionamentos afetivos. Migrar, mais do que uma rota de fuga da obrigatoriedade de protagonizar o registro social da masculinidade, serviu para explorar os sentimentos – sem os mecanismos repressores do universo familiar. Eu poderia dizer que os livros de Simone de Beauvoir e o desejo de viver livremente minha homossexualidade foram as duas grandes razões que presidiram minha mudança para Paris.
Depois que foi morar em Paris, em contato com o mundo universitário, descobriu que a vida poderia ser diferente daquela que constituía a sua família, aquela que ele tantas vezes renegou de forma veemente. Fez amizade com Claude Levi-Strauss, Michel Foucault e Pierre Bourdieu, entre outros intelectuais. Tornou-se professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Amiens. Além disso, apesar de muitas restrições, publicou artigos em diversos veículos da mídia como Liberation e Le Nouvel Observateur.
Do ponto de vista político, o mal-estar está manifesto de várias formas. Uma delas surge de maneira assustadoramente honesta: Meu marxismo de juventude constituía, portanto, para mim o vetor de uma desidentificação social: exaltar a “classe operária” para melhor me afastar dos operários reais. Ele conhecia a teoria, mas não gostava da prática – porque tinha vergonha do trabalho do pai e da mãe. No seu entendimento, eles deveriam estar alguns degraus acima na escala social e econômica (o que era impossível, pois não tinham qualificação). (...) isso imprimiu em mim, acredito, uma aversão a essa miséria, uma recusa ao destino ao qual eu era intimado e a ferida secreta, mas ainda aberta, de ter que carregar para sempre em mim essa lembrança. Em outro momento da narrativa, Didier acrescenta mais uma camada de inquietação: (...) mal nos interessávamos por arte na minha casa (...) O gosto pela arte se aprende. Eu aprendi. Isso fez parte da reeducação quase completa de mim mesmo que me foi necessário realizar para entrar em outro mundo, em outra classe social – e para distanciar-me daquele e daquela de onde eu vinha. A transição do mundo idealizado para o mundo concreto nunca se realiza de modo pacífico. A compreensão parece fugir a cada instante. As mudanças no vocabulário e nas construções frasais, o vestuário, o conhecimento literário e musical, os amigos, tudo isso constitui parte do processo de adaptação para quem deseja se sentir partícipe do mundo almejado. Infelizmente, aquele que renega a suas origens, precisa conviver com a soma das contradições, que nunca estabelecem o ponto exato em que o indivíduo está situado. Além do aumento da aflição e da ansiedade, a sensação constante de que está traindo a si mesmo. “Você fala que nem um livro”, me disseram várias vezes na minha família para zombar desses novos modos, manifestando que sabiam bem o que significavam.
O desassossego se acentuou mais tarde quando a sua família trocou a lealdade ao Partido Comunista pelos movimentos de direita e extrema-direita. Para quem fez parte da militância estudantil e universitária qualquer passo atrás nas conquistas sociais não era coerente. Didier foi incapaz de entender que os operários estavam cansados das promessas de uma vida melhor e que nunca se concretizavam. Além disso, os movimentos políticos da esquerda sofreram uma série de mutações – que se intensificaram com o passar do tempo: a pretexto de renovar o pensamento de esquerda, trabalhavam para apagar tudo o que fazia da esquerda a esquerda. (...) Não se falava mais de exploração e resistência, mas de “modernização necessária” e “reformulação social”; não mais de relações de classe, mas de “conviver”; não mais de destinos sociais, mas de “responsabilidade individual”. A noção de dominação e a ideia de uma polaridade estruturante entre os dominantes e os dominados desapareceram na paisagem política da esquerda oficial, em prol da ideia neutralizante de “contrato social’, de “pacto social”. Essa posição política se aproxima perigosamente do pensamento reacionário, aquele que dita que os interesses particulares sejam esquecidos (isto é, a calar-se e deixar os governantes governarem como bem quisessem). Nesse sentido, o desejo de diluir as fronteiras conflitantes entre a direita e a esquerda pode ser interpretado como um mecanismo que favorece o controle socioeconômico e, simultaneamente, não permite espaço para qualquer tipo de contestação.
Infelizmente, na atualidade (talvez desde sempre), a esquerda mundial vive uma crise de identidade. Parece estar perdida em um mundo em transformação. Enquanto isso, o liberalismo, ou melhor, o capitalismo vai se tornando hegemônico. Esse cenário influencia, evidentemente, as relações de trabalho, que manipulam os indivíduos como se fossem peças descartáveis.
A xenofobia aparece como outro tema significativo, mas intrinsecamente relacionado com as mudanças políticas: Durante os anos 1960 e 1970, o discurso dos meus pais, e sobretudo da minha mãe, já misturava duas formas de divisão entre “eles” e “nós”: a divisão de classe (os ricos e os pobres) e a divisão ética (os “franceses” e os “estrangeiros”). O colonialismo costuma negar os danos causados aos países que foram explorados. Tampouco aceita que parte da população espoliada queira se incorporar ao sistema do opressor. O nacionalismo ambiciona se eximir da responsabilidade política.
A vida intelectual nem sempre é bela de perto. A realidade não corresponde em nada à visão idealizada que podemos ter quando desejamos dela fazer parte. É com esse pensamento brutal que Didier percebe que, além de resistência, resiliência e coragem, precisa acrescentar outros itens à bagagem de quem decide abandonar as suas raízes (sua cidade, sua família) e fundar uma nova identidade. Nem todos conseguem.
Voltar
à Reims, a cidade onde nasceu, ou ir até Muizon (local da última residência dos
pais), constitui uma forma de reeducação sentimental. É conversando com sua
mãe, imerso em lembranças, que se aproxima do passado e passa a
refletir mais intensamente sobre o presente. Escrever é o primeiro passo para
voltar para casa.
Didier Eribon |
TRECHO ESCOLHIDO
Depois
de ter sido faxineira durante muito tempo, ela parou de trabalhar quando meu
irmão mais novo nasceu, em 1967. Não durou: coagida pela pressão econômica, ela
teve de conseguir um emprego e foi então labutar oito horas por dia em uma
fábrica – passei ali um mês durante as férias de verão depois dos exames do fim
do liceu e pude constatar qual era a realidade de uma “profissão” daquelas –
para que eu pudesse assistir às aulas sobre Montaigne e Balzac no liceu ou, uma
vez na universidade, ficar trancado durante horas no quarto para decifrar
Aristóteles e Kant. Enquanto ela dormia à noite para levantar às quatro horas
da manhã, eu lia até o amanhecer Marx e Trótski, depois Beauvoir e Genet. Só
posso aqui retomar a simplicidade com que Annie Ernaux exprime, ao falar de sua
mãe que mantinha uma pequena mercearia de bairro, a brutalidade dessa verdade:
“Eu estava segura de seu amor e dessa injustiça: ela servia batatas e leite de
manhã a noite para que eu ficasse sentada em um anfiteatro ouvindo alguém falar
de Platão”. Quando a vejo hoje, o corpo prejudicado pelas dores ligadas à
dureza das tarefas que ela cumpriria durante quase quinze anos, de pé numa
linha de montagem em que tinha de rosquear tampas em frascos de vidro, com o
direito de se fazer substituir dez minutos pela manhã e dez minutos à tarde
para ir ao banheiro, fico espantado com o que a desigualdade social significa
concretamente, fisicamente. E mesmo a palavra “desigualdade” me parece um
eufemismo que não apreende aquilo de que se trata: da crua violência da
exploração. Um corpo de operário, quando envelhece, mostra a todos os olhares
qual é a realidade da existência de classes. (p. 62).
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