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segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

DAVI E GOLIAS: A INTELIGÊNCIA CONTRA A FORÇA

 


O jogador de futebol escocês Andrew (“Andy”) Robertson negou ter trocado alguns socos com o goleiro brasileiro Alisson Becker, após a derrota do Liverpool (3 x 1) para o Leicester, no dia 13 de fevereiro de 2021. Em entrevista ao canal Sky Sports, o lateral declarou que gostou de saber que (na versão difundida pelos tabloides ingleses) ele teria levado a pior e machucado o lábio. E completou, preferia que fosse o contrário, mas os fracos não podem escolher!

Poucas pessoas conseguem manter a serenidade em situações complicadas. As diversas crises criadas pela modernidade (seja lá o que isso possa significar) estão roubando o oxigênio da humanidade e instalando o medo e o mal-estar no lugar da esperança. É como se alguma coisa ou as lideranças políticas tivesse eliminado o riso, a diversão e o prazer. Gilead é aqui, diria um leitor de O Conto da Aia (Margareth Atwood). Também não deixaram espaço para o wit – um tipo refinado de humor inglês e que, de forma simplificada, pode ser traduzido como palavra ou frase espirituosa, sagaz, que subverte o sentido do pensamento e produz algum tipo de estranhamento.

Robertson, ciente de que a história de Davi e Golias está assentada em fábula religiosa, e, portanto, irreal, em lugar de abater o troglodita com uma pedra, preferiu adotar outro caminho. Admitiu a própria fraqueza. Em outras palavras, contra-atacou. Inverteu as posições dos jogadores em campo. E fez isso de forma sutil, educada, elegante. Nomeou a barbárie com o nome do Outro, daquele que é (hipoteticamente) o mais forte. Alisson, colocado em posição de superioridade, ficou impedido de construir um discurso oposto ao formulado por Robertson (porque, se fizer isso, admitirá que não possui força). Sobrou-lhe, além do papel de vilão, o sabor agridoce do sangue que não fez escorrer do lábio do companheiro de equipe.

Esse gol inusitado se opõe a um goleiro com dificuldades para entender que o espaço de manobra é mais amplo do que as quatro linhas que delimitam o gramado. Raros são aqueles (jogadores de futebol ou não) que conseguem captar esse tipo de sutileza. Diversos motivos concorrem para o embotamento. Um dos mais singelos é a falta de habilidade para resolver situações que destoam do código de honra da masculinidade – constituído pela progressiva agressividade diária.

Simultaneamente, Robertson também deu uma estocada nos veículos jornalísticos que, amparados na razão econômica e em interesses pouco transparentes, costumam alimentar alguns boatos para conseguir audiência. A publicidade, seja a favor ou contra, modifica o valor de compra e venda da mercadoria.

Ao contestar a briga que talvez não tenha acontecido, Robertson forneceu ao público interessado em retórica (e, claro, em esportes) um contentamento diferente, uma alegria inusitada. Em lugar da raiva explicita, do exigir satisfação, da luta corporal, do duelo com pistolas, restabeleceu o equilíbrio de forças através da frase mordaz, aguda, incontestável. Soube mostrar que (apesar das provas em contrário) nem tudo está perdido para aqueles que defendem a racionalidade. Disse, nas entrelinhas, que ainda existem jogadores profissionais que estão em outro nível. Distante das emoções baratas (videogames, baralho, pornografia, apostas em cassinos virtuais) que satisfazem muitos de seus colegas de profissão, fez das palavras uma muralha contra a mediocridade.

Henry James (1843-1916), no conto A Lição do Mestre, propôs uma metáfora iluminada: Era fácil ir parar em um deserto – era o que as cartas previam, era a lei da vida; mas era acidente raro tropeçar em uma fonte cristalina. Guardadas as distâncias históricas, literárias e políticas, é possível que estivesse acenando para lampejos de lucidez como o de Robertson.

Humor nos tempos do cólera. Ou do fascismo. As doenças podem ter vários nomes, alguns impronunciáveis, todos acenando para a tristeza. O que não sofre mutação é o antídoto.  


Davide con la testa di Golia. Michelangelo Merisi ("Caravaggio").
Óleo sobre tela, 1609/1610. Galeria Borghese, Roma, Itália. 

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