O jogador de futebol escocês Andrew (“Andy”)
Robertson negou ter trocado alguns socos com o goleiro brasileiro Alisson
Becker, após a derrota do Liverpool (3 x 1) para o Leicester, no dia 13 de
fevereiro de 2021. Em entrevista ao canal Sky Sports, o lateral declarou
que gostou de saber que (na versão difundida pelos tabloides ingleses) ele
teria levado a pior e machucado o lábio. E completou, preferia que
fosse o contrário, mas os fracos não podem escolher!
Poucas pessoas conseguem manter a
serenidade em situações complicadas. As diversas crises criadas pela
modernidade (seja lá o que isso possa significar) estão roubando o oxigênio da
humanidade e instalando o medo e o mal-estar no lugar da esperança. É como se
alguma coisa ou as lideranças políticas tivesse eliminado o riso, a diversão e
o prazer. Gilead é aqui, diria um leitor de O Conto da Aia (Margareth
Atwood). Também não deixaram espaço para o wit – um tipo
refinado de humor inglês e que, de forma simplificada, pode ser traduzido como
palavra ou frase espirituosa, sagaz, que subverte o sentido do pensamento e
produz algum tipo de estranhamento.
Robertson, ciente de que a história de
Davi e Golias está assentada em fábula religiosa, e, portanto, irreal, em lugar
de abater o troglodita com uma pedra, preferiu adotar outro caminho. Admitiu a
própria fraqueza. Em outras palavras, contra-atacou. Inverteu as posições dos
jogadores em campo. E fez isso de forma sutil, educada, elegante. Nomeou a
barbárie com o nome do Outro, daquele que é (hipoteticamente) o mais forte.
Alisson, colocado em posição de superioridade, ficou impedido de construir um
discurso oposto ao formulado por Robertson (porque, se fizer isso, admitirá que
não possui força). Sobrou-lhe, além do papel de vilão, o sabor agridoce do
sangue que não fez escorrer do lábio do companheiro de equipe.
Esse gol inusitado se
opõe a um goleiro com dificuldades para entender que o espaço
de manobra é mais amplo do que as quatro linhas que delimitam o gramado. Raros
são aqueles (jogadores de futebol ou não) que conseguem captar esse tipo de
sutileza. Diversos motivos concorrem para o embotamento. Um dos mais singelos é
a falta de habilidade para resolver situações que destoam do código de honra da
masculinidade – constituído pela progressiva agressividade diária.
Simultaneamente, Robertson também deu
uma estocada nos veículos jornalísticos que, amparados na razão econômica e em
interesses pouco transparentes, costumam alimentar alguns boatos para conseguir
audiência. A publicidade, seja a favor ou contra, modifica o valor de compra e
venda da mercadoria.
Ao contestar a briga que talvez não tenha
acontecido, Robertson forneceu ao público interessado em retórica (e, claro, em
esportes) um contentamento diferente, uma alegria inusitada. Em lugar da raiva
explicita, do exigir satisfação, da luta corporal, do duelo com pistolas, restabeleceu
o equilíbrio de forças através da frase mordaz, aguda, incontestável. Soube
mostrar que (apesar das provas em contrário) nem tudo está perdido para aqueles
que defendem a racionalidade. Disse, nas entrelinhas, que ainda existem
jogadores profissionais que estão em outro nível. Distante das emoções baratas
(videogames, baralho, pornografia, apostas em cassinos virtuais) que satisfazem
muitos de seus colegas de profissão, fez das palavras uma muralha contra a
mediocridade.
Henry James (1843-1916), no conto A
Lição do Mestre, propôs uma metáfora iluminada: Era fácil ir parar
em um deserto – era o que as cartas previam, era a lei da vida; mas era
acidente raro tropeçar em uma fonte cristalina. Guardadas as distâncias
históricas, literárias e políticas, é possível que estivesse acenando para
lampejos de lucidez como o de Robertson.
Humor nos tempos do cólera. Ou do
fascismo. As doenças podem ter vários nomes, alguns impronunciáveis, todos
acenando para a tristeza. O que não sofre mutação é o antídoto.
Davide con la testa di Golia. Michelangelo Merisi ("Caravaggio"). Óleo sobre tela, 1609/1610. Galeria Borghese, Roma, Itália. |
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